“O equipamento está montado / Eu tô testando o som (...) Pra abalar, abalou / É o Baile do Dendê na Ilha do Governador.” É com a música “Pra Balançar”, de Marcio do Cacuia, que a pista de dança se abre. Homens e mulheres, em sua maioria jovens brancos, bem vestidos, amontoam-se em uma casa de shows na Lapa, zona central do Rio de Janeiro. Seguranças vestindo terno e gravata, ar condicionado gelando, chapelaria (para as mulheres guardarem suas bolsas caras e garantirem que não vão perdê-las), combos de vodka importada e energético, fumódromo (com cigarros liberados e proibidos), banheiros prontamente limpos por uma faxineira que fica a postos a noite toda. Assim como nos morros cariocas dos anos 1990 e 2000, as galeras continuam indo às festas, que outrora ganhavam o nome de baile, para curtir o funk, ritmo nascido nas favelas que ganhou espaço nas boates do asfalto, porém o ambiente parece ter mudado. Os negros, que eram maioria nos bailes das antigas, agora estão em outros papeis. Muitos prestam serviço de segurança, atendem no bar, atuam na faxina, são responsáveis por receber os pagamentos dos clientes. Mas será que só o público mudou ou o funk passou por transformações com o passar todos anos?
Silvania Melo (com o copo de cerveja na mão) não vê com bons olhos o funk atual:
“Hoje só tem música pra rebolar a bunda” (Foto: Julio Trindade)
O ritual começa cedo: é preciso ajeitar o cabelo, escolher a melhor roupa, passar a maquiagem e começar o “esquenta”, que é basicamente beber para já ir entrando no clima. “Mas tem que ter cuidado para não queimar a largada”, adianta Silvania Melo, moradora do Morro do Dendê, favela na Ilha do Governador, bairro da zona Norte do Rio de Janeiro. Loira, de estatura mediana, Silvania é uma daquelas mulheres que chamam a atenção por onde passa, seja pela sua simpatia e sua personalidade forte, seja pelos seus looks. Nascida, criada e ainda morando no Dendê, Bê, como é conhecida, sempre curtiu os bailes que acontecem no bairro. “Sexta-feira rola um pré-baile, que não enche tanto. É no sábado que o bicho pega”, afirma. “O funk de hoje perdeu um pouco a essência. Eu ainda vou ao baile, mas não mais com a mesma frequência que eu ia antes. O publico mudou, as letras mudaram. Antigamente a gente ia pra dançar, curtir os amigos, fazer as coreografias. Hoje só tem música pra rebolar a bunda”, aponta a insulana, dona de uma empresa de aluguel de materiais para eventos. O funk do passado, com letras mais românticas, que retratavam a realidade dos moradores das favelas ou de protesto, deu espaço para a sensualidade, sexualidade e irreverência em suas canções, tendência em quase todos os gêneros musicais nas paradas. Essas mudanças também atraíram novos ouvintes e amantes do ritmo, fazendo com que os mais saudosistas dos clássicos dêem espaço para uma nova geração de funkeiros e seus ídolos. O publico de fato mudou. E embranqueceu. E enriqueceu. E a mídia é uma grande responsável por tudo isso.
“É som de preto / de favelado / mas quando toca / ninguém fica parado”
Em 1994, o Brasil estava aos pés de uma rainha, apesar da monarquia não ter voltado a governar o país. A representante da realeza em questão era uma loira de 1,78 metros que reinava absoluta na televisão e nos corações dos brasileiros. Seus súditos eram baixinhos e ela atendia pelo singelo nome de Xuxa. Nome forte na TV Globo, a gaúcha era sucesso de audiência com o seu Xuxa Park, que liderava as manhãs na emissora. Amante do funk, Xuxa passou a dedicar uma hora do seu programa aos sábados para o ritmo e chamou Fernando Luís da Matta, ou DJ Marlboro, para comandar o “Xuxa Park Hits”, como foi chamou o quadro. Como destaca o jornalista Silvio Essinger no livro “Batidão: a história do funk”, ali começou o sonho dourado dos funkeiros, que entraram pela porta da frente no maior veículo de comunicação do Brasil. Mas o funk passou por mudanças até chegar nos dias de hoje, com um espaço mais estabilizado na grande mídia. “Acho que havia uma ingenuidade maior nas letras e uma busca por um estilo que ainda não estava muito bem definido. Hoje o funk já está estabelecido, com suas vertentes bem definidas, e as portas para o pop e o mainstream foram abertas por quem veio antes”, avalia Essinger. Mas quem foi que veio antes?
MC Junior e Leonardo se apresentam no Xuxa Park Hits, programa da apresentadora
Xuxa Meneghel que abriu as portas para os funkeiros se apresentarem
• Do “Parapapapapapa” para a Câmara Municipal
Ali, na entrada lateral da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, no centro da cidade, uma das figuras mais emblemáticas da música carioca nos esperava para um papo rápido. Entre um fã e outro que ocasionalmente parava para cumprimentá-lo, o assessor do vereador Renato Cinco, parlamentar do PSOL, não demonstrava ser o lendário MC Leonardo, funkeiro que, junto com o irmão, MC Junior, enfileirou hits nos anos 1990 e se consagrou como um dos maiores nomes do funk carioca. Entre seus destaques estavam o Rap das Armas, que listava uma série de armas recorrentemente citadas nas páginas policiais, e “Endereço dos Bailes”, que apontava os principais bailes do Rio. “Eu sou resultado daquilo que vivi e não daquilo que estudei.” Essa frase do MC reitera o que o jornalista Silvio Essinger colocou no seu livro: que Leonardo Pereira Motta é um dos mais articulados e cultos MCs do universo funk. “E não é de articulação política, não. É da variedade de saídas para divulgar o funk”, ressalta o MC, que é um dos idealizadores da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), organizada para ajudar os funkeiros e divulgar a cultura dos bailes.
MC Leonardo, um dos autores do hit “Rap das Armas”, é considerado um
dos mais articulados e cultos MCs do universo funk (Foto: Arquivo Pessoal)
Ali, na entrada lateral da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, no centro da cidade, uma das figuras mais emblemáticas da música carioca me esperava para um papo rápido. Entre um fã e outro que ocasionalmente parava para cumprimentá-lo, o assessor do vereador Renato Cinco, parlamentar do PSOL, não demonstrava ser o lendário MC Leonardo, funkeiro que, junto com o irmão, MC Junior, enfileirou hits nos anos 1990, como o Rap das Armas, que listava uma série de armas recorrentes nas páginas policiais, e “Endereço dos Bailes”, que apontava os principais bailes do Rio, e se consagrou como um dos maiores nomes do funk carioca.
“Eu sou resultado daquilo que vivi e não daquilo que estudei.” Essa frase do MC reitera o que o jornalista Silvio Essinger colocou no seu livro: que Leonardo Pereira Motta é um dos mais articulados e cultos MCs do universo funk. “E não é de articulação política, não. É da variedade de saídas para divulgar o funk”, ressalta o MC, que é um dos idealizadores da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), , organizada para ajudar os funkeiros e divulgar a cultura dos bailes.
“Tá todo mundo aqui / Prontinho pra zuar / Libera a energia que o planeta vai girar”
“A gente perdeu os espaços para cantar. Os artistas da velha guarda não cantam com a mesma frequência que cantavam antes porque o baile funk tradicional não existe mais. Quem tem equipamento de som hoje no Rio, se faz uma festa no sábado, não sabe se vai poder fazer no final de semana seguinte, porque a polícia pode vir e interditar, quebrar tudo. Essa é a realidade de hoje em dia aqui no estado”, lamenta Leonardo. O cantor também explica que a mudança do cenário musical afeta os artistas. Quem não aceita abrir mão do título “funkeiro” acaba perdendo espaço na mídia. “Os cantores que vieram do funk e estão na mídia hoje se renderam ao pop. MC Ludmilla deixou de ser MC. MC Nego do Borel passou a se chamar só Nego do Borel. O MC Naldo fez questão de tirar o MC e colocou o Benny, pra ficar com mais cara de artista pop”, aponta MC Leonardo, que faz questão de manter o MC e defender a bandeira do funk.
“A galera esqueceu o funk de favela e passou a ir para um funk mais pop, mais branco, um funk mercadologicamente mais interessante, mais lucrativo. A gente não pode medir o funk por esses caras. A gente não pode medir o funk pela novela. A gente tem que medir pelo espaço que ele está ganhando e perdendo nessa cidade. Nunca vivemos um momento tão ruim para o funk como agora”, avalia MC Leonardo. Ele fala ainda sobre a proibição por parte da policia e as constantes denúncias sobre fechamentos de bailes funks, principalmente em favelas ocupadas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de 2009 aponta que o funk movimentava cerca de 10 milhões de reais por mês só na Cidade Maravilhosa, empregando mais de 10 mil pessoas, entre empregos diretos e indiretos. Como os comandantes das UPPs têm o poder de autorizar e proibir os bailes nas comunidades, o funk voltou para a informalidade, perdendo o espaço que era seu por direito, desde o nascimento. O Rio de Janeiro tem 42 favelas com unidades de polícia pacificadora, porém em apenas uma, na UPP dos Tabajaras, em Copacabana, o baile funk continua acontecendo.
Espeta os pendrives no mixer, ajeita o fone de ouvido personalizado, liga o celular e já se prepara para fazer uma transmissão ao vivo, mandando beijos e abraços para os assíduos espectadores em sua conta no Facebook. Com a destreza de um maestro, mas usando bermuda e boné, Anderson Lorca, o DJ Cocamá, já está pronto para comandar seu programa Caldeirão Ilha Mix, na Rádio Ilha Mix, emissora online. Suas transmissões alcançam quase mil visualizações nas redes sociais, onde ele toca e mixa as músicas ao vivo. Cocamá é um dos muitos casos de artistas do funk que buscam as redes sociais para se destacar.
Durante todo o programa, Cocamá interage pela Internet com seus seguidores.
Sua página no Facebook é seu principal canal de comunicação com os fãs (Gif: Julio Trindade)
Com 14 anos de carreira, o DJ, que também é produtor e empresário, faz em média 15 festas por mês e consegue viver exclusivamente do funk. Além de comandar aos sábados as pistas em uma boate carioca, é presença constante em diversos clubes, além de receber convites para tocar em aniversários e casamentos. Um dos segredos, ele garante, é acompanhar as mudanças do gênero. “O público hoje em dia curte mais o funk atual, já que a maioria dos frequentadores é a galera mais nova e não conhece tanto os clássicos do ritmo. Não acredito que o público tenha perdido a identidade de favelas, mas acho que ele é mais aceito pela sociedade por estar presente na mídia, nas novelas. O funk entrou em locais que há cinco, seis anos era praticamente impossível de entrar. Não acho que a essência tenha se perdido, só os tempos que são outros”, afirma o DJ. “Youtube, celulares, Spotify, Facebook... Você consegue ouvir funk em qualquer lugar, a qualquer hora. A gente não tinha isso tempos atrás e hoje essas são as nossas principais ferramentas para manter o sucesso e seguir vencendo no funk”, finaliza Cocamá.
• A fluidez do funk
“Vamo mandar um alô pra rapaziada”
Brinco na orelha, blusa social dobrada acima dos cotovelos e uma postura informal. Em uma sala, na área de pós graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Micael Herschmann nos aguarda para a entrevista. Doutor em comunicação, Micael escolheu o funk e as manifestações culturais, principalmente nos anos 90, como objeto de estudo, publicando alguns livros na área. Mas ressalta que, apesar de não trabalhar com o funk há mais de uma década, o funk ainda faz parte do seu interesse, mesmo acompanhando de longe. “As expressões culturais tem um dinamismo da mudança”. Gangando espaços no meio musical, para o professor o funk deixou de ser demonizado. Ainda há um preconceito social com o funk, mas não se pode dizer que as mudanças de rumo de artistas, como Anitta, Naldo e Nego do Borel, possam ser atribuídas apenas para isso. O desejo dos artistas em busca de visibilidade também pode ser um fator importante para que esses artistas busquem ainda mais proximidade com a música pop. Nas palavras de Micael, “Não estou dizendo que não seja, mas jogar isso (as mudanças no gênero) só na questão do preconceito, possa ser um erro. (...) Quando o Naldo e a Anitta invadem outros mercados, eles estão, de alguma forma, abrindo espaço para outros artistas”.
Micael Herschmann, professor da UFRJ, expõe suas percepções sobre anos de
estudo a respeito do funk como expressão cultural, seu início e seus caminhos
A facilidade encontrada pelos artistas de hoje para se auto-divulgarem, em comparação com os do final dos anos 1980 e por todo os anos 1990, é um fator de extrema relevância. Com a internet, eles perceberam que, para fazer sucesso nos palcos, é preciso antes marcar presença na web. Canais do Youtube, como do produtor paulista Kondzilla, o Rei do Funk Ostentação, têm mais de 10 milhões de visualizações. Não é à toa que os artistas que fazem parte do canal estão entre os mais ouvidos das rádios, como o caso do MC Kevinho e MC Livinho. “As tecnologias ajudam. Os garotos do passinho (artistas de funk que focavam mais na dança do que na música propriamente dita) tiveram quase 10 milhões de visualizações. Além disso, a estrutura empresarial era diferente. As condições sócio-economica dos artistas de antigamente facilitavam eles a aceitar qualquer show. Já os de hoje, a não ser que estejam desesperados, dificilmente vão ser explorados, o que valoriza as apresentações”, aponta Micael Hershmann.
Já os dinossauros do funk, como é o caso de Mc Leonardo e seu irmão, Mr. Catra (“Ô simpático, para de arrumar caô”), Tati Quebra Barraco (“Não adianta, de qualquer forma, eu esculacho”) e William & Duda (“A de Abalou”), ainda resistem firmes, aproveitando a onda saudosista dos anos 1990, participando de eventos dedicados à época, casamentos e participações em discos de outros artistas. O funk é cultura. E cultura nunca morre. Ele sempre fará parte da história do Rio de Janeiro e isso é imutável.
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