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Um comício no Jardim Botânico

by Alexandre Leitão
Dois candidatos do Partido dos Trabalhadores fazem campanha no condomínio de um dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro

O ônibus 538, que realiza o percurso Leme-Rocinha, encontra-se lotado naquele início de noite de quarta-feira, 3 de setembro. Apinhados no corredor, dezenas de homens e mulheres, em sua maioria negros e pardos, espremiam-se entre os bancos, esperando a hora de, por fim, relaxarem em suas casas. A cena se desenrola na Rua Jardim Botânico, principal via do bairro de mesmo nome, localizado na zona Sul do Rio de Janeiro, área nobre da cidade. Dali a 20 minutos, a menos de um quarteirão e meio de distância do ponto em que o 538 se encontra parado, em um dos muitos condomínios de classe média alta da região, teria início um comício de dois candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT). Logo no hall de entrada do edifício, marcado por uma imponente fachada branca, o interessado é prontamente informado pelo porteiro de qual caminho deve tomar para chegar ao evento: “Ande até o final do corredor. Lá você vira à direita para pegar o elevador. Aí é só apertar o botão ‘P’”. O corredor a ser percorrido é formado por uma longa parede de mármore branco, que desemboca em um elevador dotado de uma pesada porta de madeira. O botão “P” leva ao playground.

 

 

O ônibus 538, que realiza o percurso Leme-Rocinha, encontra-se lotado naquele início de noite de quarta-feira, 3 de setembro. Apinhados no corredor, dezenas de homens e mulheres, em sua maioria negros e pardos, espremiam-se entre os bancos, esperando a hora de, por fim, relaxarem em suas casas. A cena se desenrola na Rua Jardim Botânico, principal via do bairro de mesmo nome, localizado na zona Sul do Rio de Janeiro, área nobre da cidade. Dali a 20 minutos, a menos de um quarteirão e meio de distância do ponto em que o 538 se encontra parado, em um dos muitos condomínios de classe média alta da região, teria início um comício de dois candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT). Logo no hall de entrada do edifício, marcado por uma imponente fachada branca, o interessado é prontamente informado pelo porteiro de qual caminho deve tomar para chegar ao evento: “Ande até o final do corredor. Lá você vira à direita para pegar o elevador. Aí é só apertar o botão ‘P’”. O corredor a ser percorrido é formado por uma longa parede de mármore branco, que desemboca em um elevador dotado de uma pesada porta de madeira. O botão “P” leva ao playground.

Encravada num canto do playground se encontra a saleta que receberá os candidatos Robson Leite e Alessandro Molon. Ambos já exercem mandatos como deputados – o primeiro, como estadual; o segundo, como federal – e buscam a reeleição. Filiados ao PT, os parlamentares estão prestes a encarar um evento e uma plateia bem diferentes daqueles que um dia consolidaram as bases de seu partido, no ABC paulista do início dos anos 1980. Fruto das greves operárias de 1978, lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido dos Trabalhadores seria definido, em seus primeiros anos, por um discurso e um perfil associados às classes populares. O evento realizado na quarta-feira de setembro consiste em um tipo de encontro político conhecido como comício doméstico, modalidade de divulgação político-partidária em que um candidato se reúne com potenciais eleitores em um ambiente privado, por vezes uma casa ou um condomínio, no qual se dirige a um público numericamente pequeno.

O estudante universitário Yuri Kaz Kestenberg percebeu o fenômeno há alguns anos, quando participou de um encontro com o ex-prefeito do Rio de Janeiro Saturnino Braga: “Fui apenas a um evento desse tipo, no Leblon, que não era exatamente um comício. O Saturnino já tinha se afastado da vida política e era parente de uma amiga, o que tornou o encontro uma palestra, ou uma aula-conversa. Quando participei do evento, meu interesse maior era o de conhecer mais a história do município e do estado do Rio, além do que, é sempre interessante ouvir alguém de dentro do cenário político, que tem a própria versão dos fatos, falando com menos pudor, por se tratar de um grupo reduzido de pessoas”. Saturnino não se arriscaria a dizer que a incidência dos comícios domésticos é maior entre partidos de esquerda, mas todos os convites que recebe para participar de eventos assim tinham políticos de esquerda como oradores. Na verdade, todos, à exceção do Saturnino Braga, eram do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

O fato de candidatos de partidos que se apresentam como de esquerda se disporem a realizar encontros com jovens, em alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro, pode explicar em parte pela realidade eleitoral enfrentada por siglas como o PT e o PSOL na cidade. Desde a morte do ex-governador Leonel Brizola (1922-2004), um dos maiores expoentes da esquerda brasileira, a atuação de partidos identificados com agendas reformistas, operárias ou socialistas vem sendo confrontada pela hegemonia de partidos e candidatos conservadores nos bairros periféricos da capital fluminense. Após a morte de seu líder, o brizolismo, que sempre se caracterizou no Rio de Janeiro pela forte presença das camadas populares em suas fileiras, viu essa fatia do eleitorado transferir seus votos, paulatinamente, para siglas como o PMDB.

Para Bruno Garcia, doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e responsável pela seção “Leituras” da Revista de História da Biblioteca Nacional, entretanto, o fenômeno dos comícios domésticos vai além da dicotomia “esquerda” e “direita”: “Há um problema em ser esquerda no Brasil depois da Queda do Muro de Berlim, e há um problema em ser esquerda depois da ascensão de um governo que se apresenta como de esquerda. A realização de reuniões políticas na zona Sul do Rio de Janeiro, em um momento eleitoral, talvez traduza o reconhecimento, por parte dos organizadores, de que seu eleitorado está se tornando restrito. É possível que eles sejam o fruto de uma avaliação de caráter eleitoral pragmático, que tem a ver com financiamento e militância”. Atualmente, a principal militância desses candidatos são os indivíduos que realmente acreditam no candidato, vão para o Facebook e lá desenvolvem algo que será, posteriormente, reproduzido. E isso é uma estratégia interessante para cargos legislativos.

Como aponta o historiador, as ações de campanha de partidos como o PT podem se pautar por cálculos que segmentem o eleitorado, e demonstrem, por exemplo, a concentração de eleitores, simpáticos a siglas de esquerda, na zona Sul do Rio.  É o que se atestou, por exemplo, nas eleições municipais de 2012, quando o candidato a prefeito Marcelo Freixo, do PSOL, importante nome da esquerda carioca, ganhou apenas na zona eleitoral correspondente aos bairros do Cosme Velho e Laranjeiras, ambos na zona Sul da cidade, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) . Em contrapartida, foi nas zonas eleitorais das regiões Norte e Oeste, onde se encontram os bairros populares do município, que o atual prefeito Eduardo Paes (PMDB) obteve suas maiores vantagens numéricas, sendo eleito no primeiro turno com 64,6% dos votos.

Mas bairros como Bangu, Vila Kennedy e Senador Camará, localizados na zona Oeste do Rio, onde Eduardo Paes ganhou por uma diferença superior a 58% dos votos, atesta a apuração do TSE e do TER-RJ , estão muito distantes do playground no bairro do Jardim Botânico. A saleta branca, onde acontecerá o encontro com os deputados, já se encontra iluminada por lâmpadas laterais fluorescentes e dominada por cadeiras e mesas de plástico. Estas, a todo instante, remetem a possíveis festas de aniversário de moradores, que tantas outras vezes devem ter sido realizadas no mesmo local. Sobre uma das mesas, expostos em bandejas de papelão, estão pequenos croissants, pães de queijo, salgados e torradas. Um pote com pasta de soja encontra-se ao lado de uma garrafa de Coca-Cola Zero. São 20 horas, horário para o qual fora marcado o início do evento. A ansiedade começa a surgir entre os poucos presentes. Nem Molon nem Robson Leite haviam chegado. “Leo, eles confirmaram?”, pergunta um jovem a Leonardo Martins Barbosa, doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), filiado ao PT, e um dos organizadores do comício. “Leo confessa: você nos chamou aqui para lançar a sua candidatura”, brinca o jovem, extraindo um sorriso do militante, que, com seu cabelo penteado rente ao couro cabeludo, óculos de grau de aro fino e fala professoral, no entanto, não se abala com a brincadeira. É o quinto comício doméstico organizado por Leonardo, que já participou de outros 15 como esse.

“Eu conheci os comícios domésticos quando eu ainda estava na graduação, na PUC, por meio do Alessandro Molon, que nos falou sobre como esse tipo de evento ampliou seu número de eleitores. É uma forma de organizar campanhas para cargos proporcionais, como o de deputado, e que mais do que os comerciais televisivos, de poucos segundos, e os atos de panfletagem, tem a capacidade de fidelizar o eleitor”, sentencia Leonardo, vestido em uma camiseta branca e jeans. Ele também afirma que para cargos proporcionais, até o último mês de campanha, a melhor coisa a se fazer são os comícios domésticos, porque, por meio deles, se amplia uma rede de contatos e cria uma base de apoio sólida. A partir daí, um mês antes das eleições, pode-se colocar sua campanha na rua, porque este tipo só adianta se já contar com uma base. Inclusive pelo fato do comício de rua e do comício doméstico terem objetivos diferentes. Um dos objetivos do comício doméstico é o de ampliar contatos, o que significa que ele envolve uma dinâmica de campanha diferente daquela para cargos majoritários. Bandeiras políticas são importantes, mas para concorrer a um cargo proporcional também é importante criar elos de confiança.

Questionado se o fenômeno dos comícios domésticos se daria com maior frequência na zona Sul do Rio, Leonardo, mantendo um tom de voz decidido, contemporiza: “Com minha experiência de campanha, eu vi o Molon, que tem base na zona Sul, fazendo comícios domésticos na zona Sul, e o Robson Leite, que tem base na Freguesia e Jacarepaguá, fazendo comícios na zona Oeste. Depende da base do candidato. E eles não são feitos só por partidos de esquerda. Eu sei que tanto a Laura Carneiro (candidata a deputada federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro), quanto o Marcelo Queiroz (candidato a deputado estadual do Partido Progressista), realizam comícios domésticos”. Entre uma resposta e outra, o doutorando pelo IESP cumprimenta algum recém-chegado, apertando sua mão e dizendo “E aí cara, tudo bem? E o trânsito...”, antes de concluir: “É uma modalidade de campanha muito boa, porque é barata, com o custo recaindo sobre espaço e comida”.

Munido de um corte de cabelo afro, de bermuda e camiseta, Rafael Gota Silva, professor de curso pré-vestibular e outro dos organizadores do evento, com um falar contido e um tom de voz abafado, vê nos comícios domésticos uma forma de tornar o candidato mais íntimo de seus potenciais eleitores: “Eu já organizei uns cinco ou seis comícios domésticos, e se gasta no máximo 300,00 reais para realizar um. É uma forma de permitir aos candidatos falarem com nossos conhecidos, revertendo em votos para eles. Não conheço muitas pessoas que tenham proximidade com políticos, por isso é uma forma de se aproximar, estreitar contatos e debater, ajudando a construir alguma coisa”.

A voz de Leonardo é a única a ser ouvida na sala, onde, às 20h30, só se encontram cinco pessoas. Destas, duas permanecem alheias à conversa, entretidas cada qual com seu aparelho tecnológico: um notebook e um iPad. O marasmo só é rompido com a súbita chegada de Robson Leite, deputado estadual em seu primeiro mandato. Funcionário concursado da Petrobras, o político católico, que começou sua militância nas Pastorais Sociais da Igreja, tem sua base eleitoral na zona Oeste da cidade, em bairros como Jacarepaguá e Freguesia. Com uma camisa social azul clara amarrotada, estilo lojas Colombo, e enfeitada com adesivos de sua campanha, calça jeans e tênis, Robson Leite não desperta as atenções dos presentes, que continuam aguardando Alessando Molon. “Gente, ainda vamos esperar mais um pouco”, informa Leonardo aos que já se encontram sentados na saleta, “podem ficar at ease”.

Pouco antes das 21 horas, chega Clarissa Mattos Farias, mestranda de História pela PUC-RJ. Com um vestido malhado de alcinha, saia até a altura dos joelhos, e cabelos negros cortados à moda das atrizes francesas da Nouvelle Vague, a jovem de 24 anos, moradora do bairro de Laranjeiras, na zona Sul carioca, vê com bons olhos a iniciativa do comício doméstico: “Eu estou indecisa sobre em quem votar para deputado federal, e gosto da ideia de um debate como esse. O comício de rua não pode ser definido por bandeiras claras, o que em parte ocorreu nas manifestações de junho de 2013. Num comício doméstico há uma precisão maior”. Em seguida, ela reitera: “Porém, a rua continua necessária, como efervescência”.

Rodrigo Elias, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor das Faculdades Integradas Simonsen, acredita que a sombra das manifestações de junho, que se faz presente na fala de Clarissa, ainda continua a incidir sobre as eleições brasileiras. “Nós temos uma dissociação entre o que são as estruturas políticas de representação consolidadas institucionalmente e o que são bandeiras de aprofundamento da democracia. Isso vai assistir na definição do que é esquerda e direita, pois não temos padrões fixos do que elas sejam. O que aconteceu em junho de 2013, por exemplo, foi que setores identificados com novas bandeiras encontraram novos canais de expressão, e isso tem a ver com o avanço da internet, com a capacidade de organização da sociedade civil e com a formação muito lenta de uma esfera pública no país. E participar da organização do Estado institucionalmente, apenas através de eleições, passa a ser considerado insuficiente”, observa.

Magro, com uma barba rala de pelos castanhos e sobriamente vestido com uma camisa polo branca e calças jeans, Vicente Telles, o militar do Exército que protagonizara o breve diálogo sobre política com Leonardo, confessa, em um tom de voz fino e sibilante, ter ido ao comício para escolher melhor seus candidatos. “Eu sempre votei de forma muito aleatória, e por querer dar um voto mais consciente e me engajar um pouco mais, eu decidi vir, aceitando um convite do Léo (apelido de Leonardo). Eu já tinha me decidido por votar no Jean Wyllys (candidato do PSOL a deputado federal), mas ainda não tenho candidato a deputado estadual. Mesmo com o Robson Leite sendo candidato de um partido em que eu prefira não votar, achei interessante vir para conhecer melhor suas ideias.” A decisão em votar no candidato do PSOL, identificado com a defesa de pautas do movimento LGBT, ao Congresso Nacional, leva ao início de uma breve discussão com uma menina baixinha, de óculos, rabo-de-cavalo e jaqueta, que, tentando convencê-lo a votar nos candidatos do Partido dos Trabalhadores, diz:

“Mas isso não faz sentido! Você diz que vai votar no Aécio pra presidente e no Jean Wyllys para deputado!”.

“Meu voto no Aécio para presidente é diferente do meu voto no Jean Wyllys. Eu voto nele para deputado porque ele está defendendo os meus interesses”

“Mas você não pode votar baseado só nos seus interesses!”, sentencia a jovem, enfatizando a palavra “seus”.

Às 21h09, Alessandro Molon, deputado federal e relator do projeto do Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, chega ao recinto. De imediato, o político, sem paletó e gravata, mas vestido com uma camisa social branca perfeitamente passada, e colocada para dentro da calça de terno cinza, decide cumprimentar cada uma das quase 20 pessoas que se encontram na saleta. “Boa noite, como vai? Obrigado por ter vindo. Boa noite, tudo bem? Obrigado por ter vindo”, repete a cada mão que aperta, alargando um alvo sorriso que contrasta com a pele de tom oliva – característica dos descendentes de italianos – até que, por fim, senta-se em uma das cadeiras de plástico colocadas no centro da saleta. É hora do comício começar.

A palavra é tomada pelo deputado estadual Robson Leite que, de pé, relembra os primórdios do PT, mencionando a luta que, no Rio, “começou com panfletos mimeografados”. Durante a fala de Leite, o rosto de Molon permanece constantemente iluminado por seu smartphone, o qual checa de tempos em tempos. Pelo basculante do playground entram os gritos de uma briga de casal, vinda do prédio vizinho. Enquanto Leite defende o trabalho que realizou em seu mandato, como relator da CPI das Universidades Privadas, que investigou denúncias de fraude nas extintas universidades Gama Filho e UniverCidade, Molon mantém, ao pé do ouvido,  uma secreta conversa com uma de suas estagiárias, sempre em um tom baixo e cobrindo a boca com a mão.

Leite ressalta a todo instante o quanto o voto e os esforços de campanha de cada um dos presentes serão importantes. Mesmo tendo sido o terceiro candidato mais votado do PT à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, nas eleições de 2010, Robson Leite só assumiu o mandato de deputado estadual após outros nomes da bancada terem sido chamados para assumir cargos administrativos. Dessa maneira, os candidatos eleitos acabaram cedendo espaço para Leite, então suplente, adquirir um mandato parlamentar, em 2011. Debruçando-se sobre a campanha de Marina Silva, que nas pesquisas daquela semana aparecia à frente da presidente Dilma Rousseff, Leite afirma: “Essa onda da Marina são os tucanos disfarçados. O staff dela é do Fernando Henrique Cardoso”. Ele aproveita para sentenciar sobre o atual governo do Partido dos Trabalhadores: “Estamos tirando o Brasil dos séculos XVIII e XIX e o colocando no século XX, e olha que já estamos no século XXI!”. Mais uma vez a briga conjugal do prédio ao lado irrompe na saleta, por meio de um forte grito de “Mas você?!”. O deputado estadual encerra sua fala com uma solicitação comedida: “O que eu peço é para vocês refletirem”. O som dos aplausos embala o término do discurso, ao mesmo tempo em que um dos ouvintes, gordo, de paletó e gravata pretos, e uma expressão de enfado, caminha lentamente para a mesinha de plástico, munida de salgadinhos, onde aproveita a troca de oradores para pegar um pequeno croissant e um copo de Coca-Cola.

A historiadora e professora do Centro Universitário Carioca, Nashla Dahás, que pesquisa as esquerdas latino-americanas, identifica no fenômeno dos comícios domésticos e em falas como as do deputado Robson Leite certo paradigma discursivo da democracia brasileira pós-ditadura militar: “De 1985 para cá, a esquerda e a direita no Brasil têm entendido política por dois vieses: um por meio de procedimentos formais como normalização de eleições e de ações legislativas; e o outro viés sendo o do crescimento econômico. Sob esse prisma, o caráter democrático do sistema político estaria atrelado à capacidade da economia crescer, com esse crescimento econômico sendo pautado pela inserção pelo consumo”. O elemento econômico tende se tornar mais definidor da democracia do que a participação pública, em um debate político. E isto se soma a um momento no qual se discute o aprofundamento de potencialização da participação pública na política, do ser que é consumidor interferir politicamente, participando do processo.

Findos os aplausos ao deputado Robson Leite, Alessandro Molon, próximo de encerrar seu primeiro mandato como deputado federal, ergue-se da trêmula cadeira de plástico na qual se encontra para iniciar seu discurso. Com ânimo e uma aparente experiência de palanque (características do político que, antes de chegar ao Congresso Nacional, já fora, por dois mandatos, deputado estadual no Rio de Janeiro), Molon começa com uma piada. “Quando eu cheguei, quase entrei nesse prédio do lado”, fala, apontando em direção à briga conjugal. Clarissa, Leonardo, Vicente e todos os presentes gargalham. Formado em História e Direito pela UFF e mestre em Direito pela PUC-RJ, Molon brinca com o início de seus estudos universitários, quando chegou a fazer o primeiro período da faculdade de Engenharia. “Depois de um semestre na PUC, meu boletim chegou, e vi que eu só tinha tirado nota 10 na matéria ‘O Homem e a teologia’. Foi aí que decidi partir para História”, afirma, extraindo novos risos da plateia.

Logo em seguida, sem perder o tom jocoso, começa a apresentar sua biografia política: “Em 2000 concorri a vereador no Rio de Janeiro pelo PT. Fui eleito quinto suplente em uma bancada de cinco vereadores, e poxa, não posso torcer para uma tragédia se abater sobre a bancada”. “Depende da bancada!”, corta animadamente Robson Leite, que encontra poucos risos para sua piada. Revezando-se entre a divulgação das realizações de seu mandato e breves notas cronológicas, Molon trafega entre a presente legislação eleitoral brasileira (“dos 120 mil votos necessários para me eleger deputado estadual, em 2002, 52 mil foram meus e o resto foi da legenda, o que em parte, após o escândalo do mensalão, me fez considerar que não seria correto sair do partido”) e sua participação na Comissão de Constituição e Justiça, além da aprovação do Marco Civil da Internet. “Eu não sou o autor do Marco Civil”, afirma o deputado, “o autor é a sociedade civil e a presidente da República, eu sou o relator do projeto”. Adentrando em explicações mais pormenorizadas sobre a função de bancos de dados, e como o Marco pode operar em um nível jurídico, a fala de Molon passa a ser acompanhada pelos constantes bocejos de um já sonolento Robson Leite.

Depois de concluída a exposição do deputado, seguida de aplausos da plateia, Leonardo pede aos presentes para que se inicie a sessão de perguntas. O primeiro a pedir a palavra é um jovem moreno, de barba e cabelo encaracolados, que, de bermuda, chinelo e uniforme do Botafogo, pergunta à queima-roupa:

“Eu sou usuário de maconha e queria saber se os senhores são favoráveis à legalização?”.

“Aceitamos perguntas fáceis”, afirma Robson Leite, antes que outros presentes possam fazer seus questionamentos, em bloco.

Leonardo o segue com uma pergunta sobre o que os candidatos pensam acerca do financiamento público de campanhas, e Rafael Gota sobre o que Robson Leite acha da relação da Prefeitura do Rio com os cursos comunitários de pré-vestibular. Enquanto os candidatos se preparam para responder, alguns dos presentes já se dirigem à mesa de quitutes para pegar salgadinhos. Leite principia defendendo os cursos comunitários e uma “educação adequada ao paradigma de Paulo Freire” – acompanhado pelos sussurros comedidos de Clarissa, que da plateia, repete “Isso... isso” a cada fala do deputado. Em frente à saleta, um grupo de jovens carregando caixas de instrumentos musicais e vestindo a indumentária típica de bandas de rock passa curioso pelo corredor, sendo saudado por um sorridente Molon, que lhes acena com o braço em riste.

É este mesmo Molon altivo que toma a palavra para responder ao questionamento sobre a legalização da maconha: “Nem via holandesa, nem via uruguaia, mas sim a via portuguesa, baseada em quantidade. Em Portugal, depois de um certo peso, já se considera que o portador da maconha possui intenção de vender. O problema é que no Brasil não conseguimos construir um consenso sequer sobre qual seria a quantidade de maconha que definiria a intenção de traficar. Sobre o Uruguai acho que devemos esperar um pouco”. Sobre o financiamento público de campanhas (e aproveitando para abarcar temas mais gerais), encerra sua exposição com a assertiva: “Reforma tributária e pacto federativo são questões geracionais”.

Numa mesa ao fundo da sala, dezenas de blocos de papéis, santinhos, flyers e adesivos aguardavam os presentes, que já começavam a se retirar. “Esses são nossos materiais de campanha, mas, por favor, não peguem só um, peguem vários. Distribuam nos seus prédios, nas ruas, para os seus amigos”, pede Molon, apontando para a mesa. Ao lado dela, sentado numa cadeira de plástico, um obeso assessor, de camisa polo amarela apertada e cabelos cacheados, permanece calado, mirando compenetrado um iPad.  Às 23h11, os olhos negros de Robson Leite acompanham vigilantes o trajeto de saída de um casal, que passa próximo do assessor, chega à frente da mesa, e recolhe um pequeno flyer, saindo da saleta em seguida. “Nossa guerrilha agora”, define Molon, “é evitar que a bancada a favor da doação de empresas aprove, por emenda constitucional, a possibilidade dessas doações serem feitas”. Concluída sua última resposta, é a vez de Robson Leite emitir um grito de guerra: “Temos de pôr o pé no chão, explicar às pessoas que as coisas melhoraram. Elas estão revoltadas sem saber o porquê. Vai ser uma eleição para suar sangue”. Está encerrado o comício doméstico.

“Eu meço a quantidade de votos que eu vou ter pelo número de comícios domésticos que eu faço”, diz o deputado Robson Leite ao repórter, projetando sua sombra de quase dois metros de altura. “Minha meta é realizar 50 até o final da campanha, fazendo às vezes mais de um por dia. Com a multiplicação de votos potenciais, eu poderia receber com eles 30 mil votos. E o lado legal do comício doméstico é que ele só é feito por quem sustenta o debate. Quem não realizou um bom mandato, só atendendo ao interesse do grande capital, não faz. Grandes comícios de rua costumam ser feitos mais no interior, já com um comício doméstico você aposta na multiplicação de votos.” Questionado sobre em qual região da cidade os comícios domésticos ocorreriam com maior frequência, o deputado, medindo pausadamente as palavras, argui: “Não parei para pensar nisso... Minha base eleitoral é na zona Oeste, onde eu moro... Eu já estive em comícios domésticos em Nova Iguaçu, por exemplo... Mas eu acho que na zona Sul do Rio a incidência é maior, eu falo isso por estar acompanhando o Molon, por estar fazendo essa ‘dobrada’ com ele... Ele com certeza vai dizer que é a zona Sul”.

“Esse nome ‘comício doméstico’ talvez nem seja dos melhores”, assevera o deputado federal Alessandro Molon. “Porque não é bem um comício, onde as pessoas simplesmente aplaudem a fala de um candidato. Aqui o candidato fala, mas também ouve. As pessoas podem debater, perguntar, olhar no olho. Isso é muito importante, porque o indivíduo pode perceber as intenções e a sinceridade do candidato.” Questionado sobre em qual região da cidade o candidato acredita haver maior incidência de comícios domésticos, Molon, olhando para algum ponto distante, se retrai, estabelecendo, comedidamente, longas pausas entre suas frases: “Eu não saberia quantificar... eu já fiz... eu acho que até esse momento eu fiz mais... eu acho que eu fiz mais na zona Sul... por enquanto”, conclui, frisando a expressão “por enquanto”. “Mas eu fiz vários na zona Norte e um pouco menos na zona Oeste”. Encerrada a entrevista o deputado volta a abrir um largo sorriso, apertando a mão do repórter e dizendo: “Um abraço grande! Prazer!”.

Diferentemente das expectativas de Robson Leite, ele recebeu 24.279 votos nas eleições de 5 de outubro de 2014, não conseguindo se reeleger como deputado estadual, apesar da bancada do PT ter se mantido com seis deputados eleitos (mesmo número das eleições de 2010). Alessandro Molon atingiu 87.003 votos, reelegendo-se deputado federal e se tornando o candidato mais votado ao Congresso Nacional pelo Partido dos Trabalhadores, no Rio de Janeiro. A posição de Molon na lista de deputados federais eleitos pela bancada fluminense, entretanto, é a de número 17. O deputado federal mais votado pelo Rio de Janeiro seria o polêmico militar da reserva Jair Bolsonaro, Ao término do pleito, um levantamento produzido pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), considerou que o Congresso eleito em 2014, e que tomará posse em 1º de janeiro de 2015, será o mais conservador desde 1964.