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Mercadão de Madureira

by Luísa Lucciola
O tradicional centro comercial da zona Norte do Rio continua firme e forte mesmo em tempos de mais e mais inaugurações de shoppings

Fotos: Felipe Bibian

Só no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, há três. Se considerarmos toda a cidade, esse número já sobe para quase trinta. E é fácil encontrar um em construção em qualquer canto da cidade. Estamos falando das Mecas do sistema capitalista-consumista-voraz. Por aqui, shopping center está dando como chuchu na serra e não parece haver nada que possa frear esse crescimento. Mas, se o Shopping Leblon, com seu ambiente amplo, claro e rigorosamente limpo, recebe em torno de 23 mil pessoas por dia, há outro ambiente, bastante diferente desse primeiro, que recebe quase quatro vezes mais gente. De segunda a sábado, aproximadamente 80 mil pessoas vão ao Mercadão de Madureira. Para se der idéia, é gente o bastante para encher um Maracanã, e ainda sobra gente de fora, na fila do ingresso. (público que, vale lembrar, os grandes times cariocas têm tido dificuldade de conseguir). E o que atrai tanta gente para lá é justamente a base desse sistema capitalista-consumista-voraz: o vil metal. Treze em cada catorze pessoas que vão ao Mercadão têm a mesma motivação. Os preços de lá não se comparam com nenhum outro lugar da cidade.

E se os correligionários de Caco Antíbes, o famoso personagem de Sai de Baixo que tem “horror a pobre”, acham que o Mercadão é frequentado apenas pelos menos abastados economicamente, muito se enganam. Neide de Souza é dentista, mora em Copacabana e se desloca até Madureira sempre que pode, justamente porque o preço vale à pena. E compensa mesmo. Um procedimento que está na moda entre as mulheres de todas as idades do Rio de Janeiro é o alongamento da unhas com “acrigel”. Funciona como uma unha postiça, mas é mais real e dura mais tempo. Num salão da linha Walter’s, figurinha fácil nos shoppings da cidade, essa aplicação sai pelo “módico” preço de R$ 106,00. Isso mesmo: cento e seis reais para alongar as unhas. No Mercadão, o salão Betel Cabeleireiros cobra a bagatela de R$ 45,00. Menos da metade do preço. O gerente Cláudio Lira explica que o “acrigel” é justamente o carro chefe do salão. Eles recebem aproximadamente 300 pessoas por semana e mais da metade vai fazer o cobiçado procedimento. “Vem gente da Zona Sul, Zona Oeste, todo lugar do Rio de Janeiro. Em vez de pagar mais de cem reais pra fazer perto de casa, o pessoal prefere vir até aqui, que é bem mais barato e ainda vale o passeio”, explica ele.

Na verdade, só o passeio já faria valer a pena. E o lojista e assessor de imprensa do Mercadão, Horácio Afonso, garante que há inúmeras caravanas de diversos lugares do país que vão até lá de ônibus ou van, conhecer as mais de 600 lojas que ocupam os dois andares do Mercadão. E os motivos para a visita são vários: turismo, variedades e, é óbvio, o preço. “Uma das formas de fidelizar o cliente é pelo bolso. E aqui no Mercadão há várias lojas do mesmo segmento, que geram uma concorrência que só beneficia o consumidor.” João Luiz, dono de uma loja de artigos religiosos no segundo piso, assina embaixo. Com a experiência de quem está no Mercadão há 32 anos, atrás da caixa registradora, cercado por quatro latas de cerveja vazias, incontáveis bitucas de cigarro e um último, pendendo em sua boca, ainda apagado, ele explica: “Se você quer comprar lustres, você vai aonde? São Cristóvão”, ele mesmo responde. “E se você quer um carro, vai à Intendente Magalhães [rua em Vila Valqueire conhecida pela grande quantidade de lojas revendedoras de carros]. Para comprar coisas de macumba, você vem aqui no Mercadão. Porque se uma loja não tem aquilo que você procura, com certeza a próxima vai ter. E aqui têm muitas”.

Horácio Afonso tem uma visão empreendedora do Mercadão. Seu pai tem uma loja lá desde os anos 1960, logo quando foi inaugurado esse pólo – a festa de inauguração contou, inclusive, com a ilustre presença do então presidente da república, Juscelino Kubistchek –, e ele viveu lá desde então. Presenciou toda a história do lugar, a consolidação de Madureira como centro comercial na Zona Norte, as linhas férreas e de ônibus que começaram a circundar o local, e, com certo pesar, o grande incêndio em janeiro de 2000, que destruiu parcialmente o Mercadão. Mas, se por um lado, o incêndio não é uma lembrança agradável, por outro, ele trouxe inúmeros benefícios para o espaço. Horácio conta que, embora o Mercadão sempre tenha buscado acompanhar as tendências comerciais de sua época, o lugar era muito sujo. Caminhões entravam no primeiro piso, a maioria das lojas era do setor hortifrutigranjeiro, havia muitos açougues e peixarias e animais vivos circulavam pelo local. (Há, inclusive, um personagem interessante, o Urubu Miranda. O animal estava sempre nos corredores do Mercadão e usava uma camisa do time que simboliza, o Flamengo). Tudo isso dificultava a higienização do local. Com o incêndio, tudo mudou. No período em que o Mercadão esteve fechado, Horácio garante que “Madureira parou”. “Quem tinha lojas aqui ao redor, em outras ruas, sentiu a falta do Mercadão, porque o bairro se esvaziou.” Essa falta foi tão sentida que, quando foram reconstruir o Mercadão, os lojistas tiveram, além do seguro de suas lojas, uma grande verba da Prefeitura do Rio – o órgão é completamente desvinculado do Mercadão, que funciona como um condomínio, com síndicos e eleições. A partir daí, tudo mudou. O espaço ficou mais amplo, mais iluminado e mais fresco. Um novo sistema de ventilação foi instalado e os serviços de limpeza e segurança agora são terceirizados.

Com isso, novas possibilidades surgiram para o Mercadão. Ano passado, ele recebeu o prêmio Mérito Ambiental, dado pelo Museu Histórico do Exército e pelo Forte de Copacabana. O prêmio decorre de uma ação interessante. O Mercadão capta água das chuvas para usar em sanitários. Eles têm benefícios financeiros (“Economia de mais de 10% na conta de água”) e sociais (“Marketing ecológico” e “Comprometimento com o desenvolvimento sustentável”). Isso comprova o que Horácio diz. Ainda que o Mercadão seja um espaço muito diferente de um shopping center, há um esforço permanente dos administradores do mercado, para que ele acompanhe as tendências comerciais do momento.  

Todos os dias, Rafael Silva, de 24 anos, acorda às 5h40. Na noite anterior, ele deixa sua roupa separada e a mesa do café posta para poder acordar um pouco mais tarde. Vinte minutos depois, ele já está saindo de sua casa, em Nova Iguaçu, para ir, de carona, até o trabalho. Às 7h30, o carro o deixa na rua Conselheiro Galvão, em Madureira. Rafael precisa atravessar todo o Mercadão de Madureira para chegar à loja onde trabalha, a Casa do Biscoito, que fica quase na outra entrada. No caminho, passa por uma farmácia, algumas lojas de decoração e fantasias, uma peixaria, lojas de artigos de macumba, lojas que vendem animais vivos e até mesmo um caixa do Banco do Brasil. Quando chega na Casa do Biscoito é que seu dia começa pra valer. Ele tem que conferir os produtos, organizar a vitrine e o estoque, carregar e abrir as caixas etc. Há apenas seis meses trabalhando no Mercadão, Rafael está satisfeito e não reclama de trabalhar muito – sua carga horária se estende até as sete da noite, “com uns 30 minutinhos pra gente almoçar no meio do dia”. A única coisa que realmente o incomoda é a música. Uma televisão de 21 polegadas passa o dia exibindo DVDs de shows, em sua maioria de artistas cantando música sertaneja gospel. No mais, Rafael está satisfeito com seu novo emprego e não pretende sair de lá tão cedo.

Essa satisfação parece ser uma constante entre os funcionários do Mercadão. Gerson Soares, pelo menos, está. Ele tem 55 anos, e já trabalha lá há seis. Sua função atual é recolher as incontáveis caixas de papelão que as lojas deixam pelos corredores. (Essa é mais uma das ações de responsabilidade ambiental do Mercadão, que prensa todo o papelão recolhido e envia para reciclagem). Embora ele more longe (em Jardim Redentor, Belford Roxo), trabalhar ali vale a pena. “Todos os funcionários aqui são simpáticos comigo, todo mundo me trata bem. Eu gosto muito daqui”, diz ele, com um sorriso tímido no rosto. Ângela Cristina Cordeiro é mais afiada na crítica ao trabalho. Ela é vendedora numa loja de acessórios e reclama do público. “Vem muito mendigo, camelô fedido, essas coisas”, explica Ângela, que pretende, um dia, escrever um livro, com título já definido: “As pérolas do Mercadão”. “Muita gente vem e pede ‘ríme’ [em vez de rímel] e strech ou stress [em vez de strass]. E gente bonita, com cara de rica”, diz ela, entre risos. Ângela reclama também do calor, que nem em julho dá trégua. Para ela, o sistema de ventilação não é suficiente. Mas ela também consegue ver o lado bom das coisas. O almoço no Mercadão é sempre bem servido e bem barato. (Almoça-se um prato feito por apenas cinco reais, que devem ser pagos na hora em que se faz o pedido, antes mesmo de ver a comida).

Horácio Afonso, o assessor e lojista do Mercadão, vê com bons olhos a geração de empregos que o espaço proporciona. “A gente compra matérias-primas para vender aqui, isso já é um emprego. Depois tem quem compre a matéria-prima aqui para fazer um produto diferente e trazer para o Mercadão, para vender, outro emprego. Isso para não mencionar todos os lojistas, pessoal de limpeza, segurança e quem vende nos arredores e depende do nosso movimento”, explica Horácio. Realmente, o Mercadão pouco se parece com um shopping center. Mas é justamente isso que atrai seus 80 mil visitantes diários. Sua vaidade é diferente da do shopping. Se lá, quem vende mais caro, é melhor, no Mercadão, o lojista que consegue fazer o preço mais baixo é o que faz mais sucesso. E é esse o seu charme. O Mercadão se assume como um espaço no subúrbio com os melhores preços e as maiores variedades. Os produtos lá podem até valer pouco, financeiramente. Mas todo mundo gosta.