Entre relógios e canções

by Carolina Drago
A história de uma mulher simples que, entre coisas simples, sabe onde e como reconhecer a felicidade

Jaqueline CardosoJá passava das oito da noite quando Jaqueline me recebeu em sua casa. Um quarto e sala na Avenida Nossa Senhora, em Copacabana. “Pode entrar”, ouvi, do lado de fora, depois de bater à porta. A campainha não estava funcionando. Passei pela cozinha e pelo banheiro até chegar à sala, onde havia dois colchões no chão. Seu filho estava deitado em um deles, e ela, sentada a seu lado, dava-lhe o jantar. Morena, baixa, cabelos longos bem escuros, lisos e uma franja a quase lhe cobrir os olhos, grandes e pretos. Lembrava uma índia e, quase sempre, sorria. Os pés, descalços, as roupas, simples, um vestido branco de ficar em casa. “A foto, você deixa para amanhã, que eu tenho que me arrumar.” Na rádio, Nelson Gonçalves. Na TV, o Jornal da Band. Ambos ligados, não muito alto, mas o suficiente para dividirem nossa atenção. Ela, que já me esperava para a conversa, perguntou gentilmente se eu queria diminuir o volume. Aceitei, só o da TV. A música nos acompanhou por um tempo, até o CD parar de tocar.


“Aqui, o rádio está sempre ligado. O Rodrigo adora música.” Rodrigo, seu único filho, tem 31 anos. É sua companhia diária. Por 24 horas. Aos nove meses, ele começou a apresentar sinais de deficiência mental. “Naquela época, a gente não sabia que tinha que fazer o teste do pezinho. Se tivesse feito, ele não seria assim hoje.” Rodrigo não tem coordenação motora e só se equilibra sentado na cadeira de rodas. A comunicação entre eles também é diferente. Ele não fala, mas mãe e filho se entendem. “Quer refrigerante, filho?”, ela pergunta, olhando em seus olhos. Com um balbucio, o rapaz responde e a mãe sabe se é sim ou não. E sabe mais. Não, não é só do filho que ela entende como ninguém. Desde nova, aprendeu sozinha a cuidar de tudo, costurar, fazer pisos e até armários. Armários? “É, eu compro a madeira, corto com essa máquina aqui e depois encaixo com... como é mesmo o nome daquele gancho?” Os dois armários do quarto e o da cozinha, foi ela quem fez. Como também fez o piso que reveste seu apartamento. Colou cada lajota, com rejunte e tudo. Legado dos irmãos, a quem assistia, pequena, trabalhando com obras.


Aos oito anos, Jaqueline Cardoso, hoje aos 54, veio da Bahia para o Rio com a mãe e as irmãs, para trabalhar em casa de família. Fazendo comida, arrumando, essas coisas. “Acho um absurdo as crianças de hoje não poderem trabalhar. É por isso que elas não dão mais valor às coisas. Eu trabalhava de dia e estudava à noite.” Ela conta que todos os seus irmãos, ao todo sete, desde cedo trabalharam e nunca tiveram ou deram problemas. “O pior é que hoje ainda tem esse problema do crack, as crianças se drogam, só pensam em fazer mal às pessoas. E também ninguém mais tem religião, que é uma coisa tão importante”, diz, desta vez séria. Num canto da sala, em frente à mesa onde eu estava, um quadro grande com a foto de Jesus, uma imagem de Nossa Senhora, alguns terços e um pequeno altar. “Sou católica, sim, e praticante. Vou à missa toda semana e o Rodrigo quase sempre vai comigo”, conta, com orgulho, ainda sentada no colchão ao lado do filho, pernas de índio, enquanto termina de lhe dar a comida com a ajuda de uma colher. Arroz, feijão, beterraba e carne, desfiada com a mão. Sua concentração se divide o tempo todo entre a conversa e os cuidados. “Vou com ele para todo lugar. As pessoas na rua até já me conhecem e vêm me dizer que sempre me vêem passeando com ele, vêm me dar os parabéns.”


Por causa desses passeios que faz com o filho todos os dias, empurrando-o na cadeira de rodas, faça chuva ou sol, ela hoje conhece de policial a bandido, na rua. Mas sente saudades do bairro de Copacabana - onde mora há mais de 30 anos - dos tempos da ditadura. “Naquela época, não tinha esse perigo todo que tem hoje, não. A gente podia andar na rua, até com joia. Eu mesma tinha muito colar de ouro, e podia usar”, lembra, levando a mão ao pescoço. “Copacabana agora é muito esquisita, tem muito morador de rua, as portarias dos prédios são todas gradeadas. Mas de que adianta tanta grade? Os bandidos entram, mesmo assim”, diz, entre uma colherada e outra ao filho. A política de hoje, sim, decepciona. Balança de leve a cabeça quando se lembra da campanha deste ano para a presidência: “Foi só acusação para todos os lados. Não gostei. É tudo panelinha, sai um, mas sempre continua a mesma coisa”.


Jaqueline ainda falava sobre a corrupção no governo, quando se levantou para pegar o remédio do filho. Foi quando pude notar a quantidade de relógios que enfeitavam a parte de cima da estante da televisão. Cerca de 15. Alguns marcavam a hora certa, outros só enfeitavam. Mas por que tantos? “É que coleciono”, disse, rindo do meu espanto. “Tem de vários tipos, de corda, pequeno, grande. Aquele da cozinha, uma amiga trouxe da Holanda. E esses aqui, a hora está errada porque eu tenho que dar corda”, explicou, enquanto me mostrava cada um dos relógios antigos. E os rádios? Só na pequena sala, havia três. “Ah, mas eu tenho ainda mais dois. E tenho também um menor...”, enquanto se levantava para buscá-lo em uma bolsa no banheiro. “É que eu ando sempre com um rádio. Ouço música o dia inteiro.”


Na televisão, ela assiste quase sempre ao jornal, gosta mais do da Band. E diz que sente muita falta das novelas de época. “Chica da Silva, O Bem Amado. Você ainda nem era nascida.” O único programa, além dos telejornais, que ainda gosta de assistir é A praça é nossa (do SBT). “Até A grande família (da TV Globo), que antes eu gostava de ver, agora ficou sem graça”. Sem internet ou celular - “se no passado a gente não tinha, posso viver sem isso agora” -, suas distrações são a TV, o rádio, as visitas da vizinhança, os passeios diários. E as boas lembranças. Ao recordá-las, Jaqueline se levanta e vai até o armário da sala, um dos que fez, abaixa-se e começa a procurar alguma coisa. É quando encontra uma caixa de fotos e traz até a mesa. “Olha aqui, o Rodrigo quando era bebê. Nessa época ele não tinha nada ainda. Esse era o pai dele, que levou quatro tiros e ficou paralítico quando o Rodrigo tinha um ano. Depois disso, ele pediu para eu ir embora, disse que não tinha mais nada para me oferecer. Eu chorei muito, mas depois entendi”, disse, sem se emocionar. Como se aquela história já tivesse sido contada muitas vezes.


“Esse foi o meu segundo marido, ele era inglês. Trabalhava na Light, logo que ela veio para o Rio. A gente se casou lá na Inglaterra, nessa ápoca eu viajei muito.” Agora, Jaqueline me contava como se fôssemos velhas conhecidas. Passava-me várias fotos, à medida que as tirava de dentro da caixa. Cada uma, uma história. Bahia, Marrocos. Foi um ano de viagens. “Ele me disse que a gente tinha que se casar na Inglaterra para eu poder ganhar cidadania e ter direitos, como esposa. A gente viajou muito. Parece que Deus estava me preparando. Acho que é por isso que hoje eu não ligo de ter que ficar em casa com o Rodrigo, cuidando dele todo o tempo. Nessa época eu conheci muitos lugares, aproveitei muito.” Durante quase duas horas de conversa, não a conheci tanto quanto nos 30 minutos em que ela me mostrava suas fotos. A vida ia sendo contada, de uma forma muito mais real. E Jaqueline sorria, ao relembrar velhas histórias.


Passava das dez e meia da noite quando decidi me despedir. Por ela, me mostraria toda a caixa e mais outra. Fotos recentes, ela já não tem. Só dessa época. Viagens, desfiles em escolas de samba, casamento. Eu já me levantava para sair, quando perguntei se algum dos quadros que enfeitavam sua parede era seu. “Não vai me dizer que você também pinta?” A resposta foi sim. Na verdade, dois dos vários quadros que enfeitavam a casa eram seus. O da cozinha e o da sala. Neste, uma bela moldura contornava dois prédios ao fundo, as janelas em detalhes, um poste de luz, daqueles antigos, e um jardim aquático em primeiro plano. Sobre o poste, uma coruja, pequenina, mas ainda assim o detalhe mais vivo do quadro. Jaqueline o assinou em 76. Pintou de lembrança das coisas que via, cada uma em um lugar. “Você viu a coruja?”, foi a única pergunta que me fez, enquanto eu o observava. Impossível não ver. Mas fácil pensar que ela não estaria lá à toa.