Cláudia Saldanha, a militante da arte

by Camille Dornelles
A trajetória da mulher que trocou os pincéis pela sala de aula e hoje luta por uma maior divulgação da cultura a partir de sua mesa na Escola de Artes Visuais do Parque Lage

 

Nascida em família de artistas e formada em educação artística, a diretora da EAV, Claudia Saldanha, é a idealizadora da primeira revista digital de arte contemporânea do Brasil / Foto: Camille DornellesPara formar artistas e informar amantes da arte. É assim que Claudia Saldanha, diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, define a nova empreitada de criar a primeira revista digital sobre arte contemporânea do Brasil. A revista Portfolio, lançada em janeiro, traz reflexões sobre várias áreas artísticas para uma experiência lúdica e multitoque em tablets. A ideia inovadora partiu da própria diretora e estava acalentada havia quatro anos.

Marcamos o nosso primeiro encontro para uma sexta-feira à tarde. Por telefone, Claudia havia dito que era seu dia menos atarefado. Combinamos a entrevista para as 14 horas. Quinze minutos depois do horário programado, entrei no hall da administração e soube pela recepcionista Ana Carolina Santos que a diretora ainda atendia em sua sala o convidado da hora anterior. Fui convidada a esperar sentada em uma das três poltronas de madeira clara com assentos de elásticos em xadrez que ficam na recepção.

Depois de trinta minutos, ela apareceu por entre as grandes portas de madeira rústica que dão para a sua sala junto com um homem de meia idade vestido informalmente e de ar apressado. Acompanhou-o até a porta de saída da recepção em uma discussão energizada e se despediu com dois beijos no rosto depois de mais alguns minutos de conversa.

Claudia voltou ao seu escritório me cumprimentando com a cabeça, mas só fui convidada a entrar minutos depois por uma mulher baixinha que falava alto e grave, a assessora de imprensa. Ana Carolina, que cobre o turno da tarde, diz que isso é rotina: “ela sempre cumprimenta quem está por aqui, mas o nosso contato se resume a ‘oi’ e ‘até logo’”. “É difícil falar de alguém com quem não se tem muito contato, mas tem gente que fala até menos e de cara amarrada, o que não é o caso dela”, completa, com voz baixa e timidez.

Claudia me recebeu com grande proximidade. O traço ficou evidente não pelos dois beijos no rosto, cumprimento tipicamente carioca, mas pelo sorriso largo e pela mão que mantém no ombro de quem cumprimenta, criando um abraço involuntário com um dos lados do corpo. Pedi desculpas pelo atraso, ao que ela disse que não havia problema algum. Mostrou-se bastante interessada no modo como seria registrada a entrevista e onde ia ser publicada, informação que já tinha a partir de nosso contato por telefone.

Ofereceu-me água e café. Comentei sobre a almofada que mantém na prateleira atrás de sua mesa, estampada com o retrato de Monalisa, que Claudia explicou ser trabalho do Nelson Leirner, artista paulista com atuação nacional e internacional desde 1961, ex-coordenador do curso básico da EAV. Estendeu o braço em direção a uma das cadeiras pretas que rodeiam a mesa de reuniões com quase quatro metros de comprimento, feita de tronco de árvore.

 

O pátio da piscina, atração da EAV, é o ponto de chegada obrigatório dos visitantes da escola / Foto: Camille DornellesO prédio principal da Escola (fundada pelo artista plástico Rubens Gerchman em 1975), situada dentro do Parque Lage, no Jardim Botânico, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, é uma pomposa construção de estilo eclético aos pés do morro do Corcovado, onde fica o Cristo Redentor. O hall da administração, sede da sala da diretoria, situa-se no primeiro corredor, onde à direita fica uma piscina. Sua sala é retangular comprida, com a mesa de reuniões no centro, envolta por cinco cadeiras pretas de acrílico de cada lado. Toda a mobília convive nesse contraste entre o moderno e o rústico.

Mais à frente fica a sua mesa, com dois metros de comprimento, sobre a qual encontra-se um computador Macintosh de tela larga bem no centro, que bloqueia a sua visão se quiser participar das reuniões sentada em sua cadeira estofada. Provavelmente por isso a diretora sempre senta com seus convidados à mesa de conferências.

Três janelas altas na parede esquerda de sua mesa, à frente de quem entra, proporcionam um lugar bem iluminado e com uma bela vista para a Serra da Carioca, parte do Parque Nacional da Tijuca. Em dias quentes, como era o caso no dia da entrevista, as janelas também ajudam a refrescar o ambiente. Abaixo da segunda janela fica uma mesinha com duas garrafas térmicas – uma para café e outra para água –, para onde Claudia migrou assim que me sentei. Depois, saiu para falar com a equipe que trabalha na sala ao lado da sua. Voltou e foi até sua mesa, mexeu no computador e imprimiu e-mails que leu sentada à minha frente sem falar nada.

Aos 54 anos e mãe de dois filhos, conserva um físico enxuto e pele saudável, que ela atribui as suas caminhadas matinais diárias no posto 6 da praia de Copacabana, onde mora. O porte firme era realçado pelo vestido na altura dos joelhos, de tecido branco bem trabalhado. As alças grossas mostravam que o modelo foi escolhido por causa do clima, mas o calor não abalava o estilo comportado da gestora: decote em V pouco profundo, sem colares e com brincos de argolas minúsculas, tímidas. O cabelo é mantido bem curto e deixado na cor e com o ondulado natural, segundo ela, há muitos anos. O penteado volumoso envolve um rosto maquiado com nada além de pó sobre a testa.

Os detalhes do visual, porém, não condizem nem com seus 1,70 de altura e costas largas, tampouco com o timbre grave de sua voz. Em um sotaque carioca pouco carregado, enfim se dirigiu a mim, depois de colocar sobre a mesa os óculos com armação retangular preta que usa para ler: “Pronto. Desculpe. Precisava ler os e-mails, até para não me esquecer de citar o nome de ninguém”, disse. Referia-se aos participantes do conselho editorial da revista.

Quando organizou os papeis e colocou-os sobre a mesa, entendi que podia começar a falar. Enquanto perguntava sobre o início da ideia de se criar a Portfolio, Claudia olhava de forma fixa para mim, quase sem piscar, mas a partir do momento que começava a responder, desviava o olhar em direção à porta atrás de mim, focando em nada.

Sua concentração na conversa era notável. No meio da entrevista, o vento que entrava pelas janelas derrubou um copo descartável que estava na sua mesa, fazendo barulho. Ela não se mexeu nem interrompeu a fala, como se nada tivesse acontecido. A assessora de imprensa agora também estava lá, mas Claudia quase não se dirigia a ela, falava diretamente comigo.

 

A revista Portfolio é um projeto antigo. “Essa publicação é um projeto acalentado desde o início da nossa gestão em 2009, só que a gente não sabia muito bem como começar”, relembra. A escola produz catálogos de seus eventos artísticos desde antes dessa época, mas a diretora sentia falta de um produto que falasse sobre arte de modo mais abrangente. “A escola tem o compromisso de formar um público que deseja entender um pouco mais sobre as artes contemporâneas e que possa interagir com elas. Faltava algo que refletisse isso.”

Logo que foi convidada para assumir a diretoria da EAV por Eva Doris Rosental, superintendente de artes da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, em 1998, Claudia desejava criar uma publicação em formato digital. O principal motivo era a necessidade de cortar gastos. Uma tiragem de mil catálogos pesa de 30 mil a 40 mil reais no bolso da instituição, então sobraria pouco dinheiro para custear uma revista impressa de qualidade.

Desse modo, a gestora passou a pesquisar as melhores maneiras de implantar a ideia e formou o conselho editorial da revista, composto pelos artistas Anna Bella Geiger, Ricardo Basbaum, pelos professores Flora Süssekind, Angela Leite Lopes, Glória Ferreira, Charles Watson, Lilian Zaremba e pelo crítico de cinema Carlos Alberto Mattos. “Deixe-me ver se não me esqueci de ninguém”, disse, revisando os papeis sobre a mesa. Não esqueceu.

Foi a partir de 2012, quando o grupo começou a programar a criação da revista, que a equipe descobriu que o virtual também pode sair caro: “chegamos a orçar a criação de software com três empresas diferentes. O preço era inviável, em torno de cem mil reais”, relembra Claudia.

A solução, diz ela, veio da jornalista Marília Martins a partir de um oportuno encontro das duas envolvendo a própria EAV. “Ela veio ministrar um curso gratuito sobre arte e tecnologia no ano passado. Como é uma pessoa muito ligada a esse ramo, comentamos com ela sobre esse projeto e que não sabíamos como começar”, conta. A jornalista então apresentou alguns softwares livres prontos para uso, em que só era preciso pagar a instalação, o que ficava muito mais acessível. “Esses programas que se dizem livres nunca são exatamente livres, mas é algo que a escola pode pagar. Somos uma instituição do Estado, então não temos recursos”, declara a diretora.

A falta de verba é um assunto do qual Claudia comenta sem a menor cerimônia, revelando, inclusive, que, por esse motivo, o número experimental foi assinado por funcionários e alunos da EAV junto com Marília de forma voluntária. “Foi uma revista feita praticamente sem recursos, todos nós trabalhamos sem receber, mas a gente acredita que depois desse primeiro número vamos conseguir captar recursos e fazer um segundo número com muito mais profissionalismo.”

 

Cláudia é filha de ilustradora e neta de muralista, mas a maior influência, porém, veio da tia pintora de afrescos / Foto: Camille DornellesA militância pela educação através da arte é um traço antigo na vida de Claudia. Filha de ilustradora e educadora artística e neta do muralista Paulo Werneck, conviveu desde muito cedo com as artes plásticas. “Para uma criança pequena isso é definitivo, de alguma maneira ela vai se ligar à arte”, afirma.

O pai, apesar de ter seguido para a advocacia, convivia bem com os artistas da família e com a vontade da filha de seguir a carreira artística. “Ele nunca forçou nenhuma barra, ao contrário, incentivava muito”, diz.

Mas a maior influência familiar veio da tia paterna, a artista Ione Saldanha, a quem Claudia sempre visitava. Pintora, escultora e desenhista, Ione trouxe ao Brasil técnicas de afresco que aprendeu durante sua estadia em Paris, em 1951. No final da década de 1960, momento áureo de sua carreira, abandonou a superfície bidimensional para pintar sobre bambus e ripas. Dez anos mais tarde, a sobrinha ingressava na faculdade de Educação Artística da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Quando se formou, Claudia foi contratada pela tia para trabalhar em seu ateliê, ampliando sua vivência artística, firmada pouco depois em seu mestrado em Artes feito em Nova York. “Cheguei a fazer umas exposições e tal, mas vi que não era a minha praia e abandonei”, narra.

Resolveu seguir o caminho da educação e passou a dar aulas de arte em escolas primárias antes mesmo de iniciar seu mestrado. Foi professora do Núcleo de Crianças e Jovens da EAV e também ministrou aulas de história da arte para alunos de ensino médio, ofício que exerce até hoje no Colégio de Aplicação da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Quando foi convidada para ocupar a atual cadeira, porém, trabalhava na instituição Rio Arte, importante mecanismo de incentivo à cultura, extinto pelo governo César Maia em 2006. Foi lá que conheceu a agora superintendente de arte.

Toda essa vivência deu à Claudia mais confiança para exercer esse trabalho. “Embora me assustasse o tamanho da escola e o cargo, eu já tinha familiaridade com o assunto porque já tinha dado aula e exposto como pintora. Então isso ajuda a lidar com as questões com as quais eu me deparo aqui”, avalia, considerando-se tanto artista quanto educadora.

 

Uma funcionária da administração interrompeu nossa conversa para pedir assinatura em alguns formulários. A porta de sua sala estava aberta e a diretora consentiu que entrasse sem cerimônia. Assinou os formulários enquanto discutia sobre o prazo de entrega de alguns catálogos. “Estamos correndo atrás dessas publicações porque acabamos de ter uma exposição aqui no campus”, se desculpou.

Há duas grandes diferenças entre essas publicações antigas e a nova empreitada. Primeiro, o formato, evidentemente. Por ser interativa, a revista Portfolio chama o leitor a criar uma diagramação personalizada, mexendo na hierarquização das matérias, vídeos e fotos. E segundo, o modo de abordagem do conteúdo, que traz temas do cinema, teatro, música, artes visuais, literatura e poesia em reportagens e ensaios. Tudo com um olhar mais reflexivo do que informativo.

Para isso, diz ela, a tiragem será bem espaçada: “uma tiragem rápida poderia comprometer o conteúdo da revista. Preferimos que demorasse um pouco mais para vir recheada de informações que possam durar mais tempo”. Assim, a decisão do conselho editorial foi produzir três revistas por ano, com reportagens que possam ter um prazo de validade de pelo menos seis meses. “Ela pretende ser uma revista de cabeceira”, atesta a idealizadora.

O caráter reflexivo da revista também está de mãos dadas com o objetivo educacional da instituição. Mas apesar do vínculo, a proposta é que a revista apresente mais conteúdo produzido fora dos muros da escola do que dentro. O primeiro número teve uma proporção de 30% de conteúdo da instituição contra 70% do restante do Brasil, e a promessa é que continue assim. “Deve haver essa mistura, já que a revista pretende levar informações consistentes sobre a arte ao público externo”, diz a educadora. Ela completa: “mas é preciso ter algo sobre a escola, pois é importante para o processo de aprendizado do aluno que ele seja exposto”.

A próxima edição da Portfolio será lançada em maio e a última do ano entre outubro e novembro. Assuntos novos vão dividir espaço com temas que já saíram no número experimental, como os museus. O conselho, porém, programa novidades: “queremos que pelo menos as matérias principais sejam bilíngues – traduzidas para inglês - e com linguagem mais leve e enxuta”, revela a gestora. “Outro desafio vai ser contratar autores para escrever matérias com mais profissionalismo.”

Uma boa notícia para quem não possui tablet é o site da revista. A experiência não é a mesma, mas o conteúdo está disponível na íntegra. “Foi uma exigência minha de que também fosse produzido um site para que quem não tem tablet possa acessar pelo computador”, assume. Quando perguntada sobre a necessidade de vincular o conteúdo também pela internet, quem fala é a Claudia educadora: “nós somos uma escola pública do governo do estado, então 90% dos nossos alunos não têm condição de comprar um tablet. Nossa prioridade deve ser educar”.

A diretora se mostra satisfeita com o resultado e acredita no poder do digital: “A publicação virtual tem uma rapidez que a impressa não tem e permite uma difusão muito mais ampla, rápida e barata”. Para ela, o grande diferencial do produto é ter nascido no ambiente virtual: “Vemos a mídia impressa fazendo suas versões online, mas o que a EAV criou é um produto inteiramente destinado à leitura digital. Acho que é isso que dá tanta qualidade ao produto”, conclui. A revista pode ser baixada gratuitamente através do iTunes e da Android Market, sendo compatível com os sistemas operacionais iOS, acima de 5.0, e Android.

 

Clique AQUI para visitar o site da revista Portfolio.