Das ruas para o samba

by Ana Paula Monte
A baiana Eliene dos Santos sobreviveu às ruas e hoje, com muito bom humor, conta a sua história

Eliene dos SantosO relógio marca quase 10h quando a vejo entrar apressada pelo portão principal da Fundação Leão XIII. Observo de longe. Durante seu percurso, contabilizo cinco paradas. Em todas, as gargalhadas são altas, os gestos espalhafatosos. Depois de distribuir sorrisos e muitas – muitas mesmo – palavras, ela chega ao destino. Antes, liga um barulhento ventilador de teto. Era cedo, mas os termômetros lá fora já marcavam um calor de 35 graus em Bonsucesso. “Peguei um trânsito que você não acredita! E o ônibus? Lotado! Quase morri de tão abafado...mas já até me acostumei”, diz. “Teve uma vez que...”.


Eliene dos Santos, conhecida carinhosamente como Baiana, é assim. Aquele tipo de pessoa que só de conhecer alguém já começa a contar toda sua vida. Vida por sinal cheia de altos e baixos. Mãe jovem de dois filhos, sofreu com o alcoolismo dos pais, foi vítima da violência doméstica do ex-marido e conheceu de perto a humilhação de quem vive nas ruas. Hoje, a moça nascida em Itacaré, interior da Bahia, conta que deu a volta por cima. “Sei que já passei por muitas coisas, mas, sinceramente, deixei tudo no passado”, suspira. E continua. “Me considero uma pessoa feliz. Para completar, falta só um marido!”, brinca.


Como tudo em sua vida foi intenso, não é de se admirar que ela já tenha casado duas vezes: a primeira com um dono de bar e a segunda com um ritmista da Mangueira. Atualmente, declara-se solteira, mas não muito. “A gente tem um casinho aqui, outro ali, nada muito sério. Mas quero me casar de novo sim, não desisti não! E dessa vez com direito a uma festa bem grande, com muita comida, música e gente dançando”, gesticula empolgada. Aliás, as mãos parecem ter vida própria: estão apontando, mexendo no cabelo, fazendo movimentos no ar. Não sossegam nunca.


Mas os constantes sorrisos e brincadeiras não escondem. A experiência está ali e faz com que Eliene pareça muito mais uma mulher de 50 anos do que uma de 32, sua idade. A vaidade, entretanto, é um de seus maiores defeitos, ela afirma. “Não posso ver um espelho que paro. E pra sair? Demoro quase duas horas me arrumando. Sempre que posso, compro uma roupa nova. Como não ganho muito, é de vez em quando e só nessas feirinhas mais baratas”, conta. “Mas é tudo muito bonito, porque tenho bom gosto!”, emenda em tom pomposo.


O trabalho como cozinheira na Fundação Leão XIII não rende muito, mas foi o que salvou Eliene das ruas, ela conta com naturalidade. “Estava decepcionada com a vida, quase em depressão. O meu segundo marido me batia muito! Acordei um dia e decidi deixar tudo para trás.” Sem destino, a moça viveu nas ruas até encontrar ajuda. “Dormi em pedaços de papelão, tomei banho em buracos e pedi dinheiro para comer. Até que um dia me falaram da Fundação. Se não fosse por esse abrigo, estaria desamparada até hoje”, afirma.


A Fundação Leão XIII é um abrigo temporário do governo do Estado do Rio de Janeiro. Seu objetivo é prestar assistência à população em situação de rua. Lá, os internos recebem comida, cuidados médicos, orientação para regularizarem seus documentos e ajuda na busca de emprego. “Dois meses depois de chegar já tinha conseguido juntar dinheiro para alugar um quarto na favela do Jacarezinho”, orgulha-se Eliene. “Faz três anos desde que comecei a trabalhar aqui como cozinheira e tenho certeza que vou me aposentar nesse lugar!”, diz com convicção.


VIDA NOVA
É verdade que ninguém sem foco e determinação poderia superar o que Baiana superou. Quando criança ela já enfrentava problemas de gente grande. Trabalhava na roça com os pais, que gastavam todo o pouco dinheiro que faziam em bebida. Decidida a construir uma nova vida, a moça viria tentar a sorte no Rio de Janeiro, da onde nunca mais iria querer sair. “Praia é o que há de melhor nesse mundo. Não consigo mais viver sem. Gosto é de tostar no sol e ficar bem morena!”, comenta, mostrando a recente marca de biquíni.


Eliene diz não ter mais ressentimento dos pais. Ela reuniu em volta de si um grupo de amigos, que, hoje, são sua família. “Fui criada em um ambiente difícil, que, apesar de tudo, me ensinou muito. Nunca coloquei um gole de álcool na boca, porque vi o que pode acontecer quando alguém faz isso. Essa minha ida ao inferno me transformou em uma pessoa melhor. Aprendi que tudo passa e, por isso, tenho que encarar a vida com alegria”, filosofa com voz firme. “Desde que sai de Itacaré só vi meus pais mais uma vez. É difícil conseguir voltar porque, além de ser longe, a passagem é bem cara. Sempre que posso envio um dinheirinho extra para lá e até brinco que eles podem tomar uma cervejinha. Mas só uma!”, enfatiza.


ELA VIROU CARIOCA
Depois dessa conversa mais densa, uma pequena pausa para as fotos. Vaidosa como é, Baiana tenta dar alguns últimos retoques no visual. “Queria estar com uma roupa mais arrumada”, reclama. Tudo pronto para o clic, quando eu interrompo a sessão. “Ué, não vai dar um sorriso?”, “Não! Não gosto dos meus dentes. É bom, vão achar que eu sou uma pessoa séria!”, se diverte.


Ela parece relembrar nossa conversa e conta como foi difícil o começo no Rio de Janeiro. “Não tinha nem o ensino fundamental na época, então precisei me virar de qualquer jeito. Acabei vendendo bala dentro de ônibus.” Quando chegou à Fundação Leão XIII, Eliene foi encaminhada a um supletivo, e hoje, já recebeu seu diploma de ensino médio. “Adoro ler. Meu último livro foi Dom Casmurro, do Machado de Assis. Peguei na biblioteca daqui. Estou à procura de outro, você tem alguma sugestão?” Indiquei Memórias Póstumas de Brás Cubas, do mesmo autor. Ela gostou do nome. Disse que iria procurar.


Depois de alguns meses vivendo na capital fluminense, Eliene conheceu seu segundo marido. Foi ele, inclusive, que apresentou a baiana apaixonada por axé – “Sou louca por uma micareta! Não perco um show do Chiclete com Banana!” – à batucada do samba. “Desfilo há vários anos na Mangueira, e quase todo final de semana vou à quadra da escola. Já virei carioca! Sambo melhor que muita mulata, viu?”, desafia Eliene, que ano que vem, entretanto, ficará de fora da Sapucaí. “Vou trabalhar durante o carnaval. Quero um dinheiro extra para comprar um relógio novo para o meu filho.”


E é somente quando fala dos filhos que Eliene economiza nas palavras. As marcas do passado parecem vir à tona. Matheus, de 7 anos, mora com o pai em Vila Isabel. Já Tayane, de 16, vive em Brasília. “Meu filho eu até consigo ver com mais frequencia, mas a menina já faz quatro anos que não encontro. O pai dela diz sempre que posso trazê-la para viver comigo, mas eu não tenho coragem. Ela tem uma vida lá, com uma realidade completamente diferente da minha. Como vou colocá-la para viver em uma favela?”, questiona. Mas o silêncio não dura mais do que cinco segundos. A arretada baiana parece lembrar da sua filosofia e a tristeza volta a ficar de lado.


O relógio marca quase meio dia quando vamos, apressadas, até portão principal da Fundação Leão XIII. Observo de perto. Durante nosso percurso, contabilizo três paradas. Em todas, as gargalhadas são altas, os gestos espalhafatosos. Depois de distribuir sorrisos e muitas – muitas mesmo – palavras, chegamos ao destino. Antes, trocamos e-mails. “Estou começando a aprender a mexer no computador, mas ainda não está dando muito certo, não! Toda hora faço alguma coisa errada”, diz. “Teve uma vez que...”.


Sim, antes de ir, eu escutaria mais uma história.