Um coração que bate 75 anos pelo América

by Felipe Sodré Moreira
Valfrido Gomes Neto, o Netinho, 75 anos de idade e pelo menos 60 de paixão pelo América

O encontro ocorreu em uma Tijuca que praticamente só restou em fotografias. Uma pracinha sossegada, cercada por prédios baixos, antigos. Um dos poucos ruídos vem do radinho de pilha de um senhor calvo que está na praça, sentado em um banco à sombra. Traja bermuda e o uniforme rubro do América um tanto apertado sobre a barriga. Este é Valfrido Gomes Neto, o Netinho, 75 anos de idade e pelo menos 60 de arquibancada.

Mão estendida e sorriso:
— Tão jovem e quer falar do passado?

 

Explico que a conversa é menos sobre as glórias do América, e mais sobre a sua paixão pelo time. Netinho então, um pouco mais solene, conclui que falaremos do presente, porque nada em sua vida é tão permanente quanto o time rubro.  Quando tudo começou? “Quem sabe?”, filosofa ele, “quem sabe quando a alma encarna no corpo?”.  Depois, Netinho conta que nasceu e cresceu na Tijuca, perto do clube. O pai era sócio e ele, desde pequeno, freqüentava a sede na rua Campos Sales e lá acompanhava os treinos e as partidas. “Mas isso não tem a menor importância”, emenda. “Se eu tivesse nascido em Laranjeiras e freqüentado o Fluminense, ainda assim seria americano. Tenho certeza disso”, garante com a mão esquerda sobre o peito e um ar patriótico.


Conversar com Netinho equivale a consultar uma enciclopédia de dez volumes dedicada ao América, mas não só. O papo, que geralmente flui, de vez em quando desvia rumo a uma digressão não-futebolística. É quando Netinho aponta o olhar em outra direção e sua voz sai mais pausada. Não lembra o resultado da primeira partida a que assistiu no Maracanã, mas não se esquece do sabor dos tremoços que seu pai lhe comprou naquele dia e ele comeu na arquibancada. “Nunca mais comi tremoços tão bons. Eram de um armazém que não existe mais, de um português, duas ruas para baixo.” Em seguida, vira-se para mim e pergunta marotamente: “Você sabe o que são tremoços?”. Afirmo que sim, mas que não aprecio. Ele parece desapontado: “É. Eu também não gosto mais”.


Para levantar o astral, nada melhor do que espanar a poeira e recordar os grandes feitos do América. Do título de 1960, o último estadual conquistado, as lembranças são as melhores e mais gaiatas. “Fizemos um baita campeonato. Na final, vesti uma capa vermelha que comprei em uma loja de macumba e improvisei um gorro com chifres. Quis me vestir de Brasinha (o diabinho que é a mascote do time) para ir ao Maracanã.”  O resultado? “Batemos o Fluminense. Fizemos uma farra pela Tijuca. Na comemoração, sem me dar conta, entrei fantasiado de diabo na igreja dos capuchinhos.” Se Netinho havia bebido? “Dois dedinhos. Pouca coisa” – o que a feição traquina nega com sutil veemência.


E quem sabe o América não retorna ao caminho das vitórias? Netinho coça a calva, passa a mão no queixo, toma fôlego. “Acho difícil. São muitos anos de atraso.” Mas, e o Romário como cartola, não ajuda? Netinho mostra-se reticente: “Acho que não atrapalha, digamos assim”. Insisto que a presença do Baixinho no clube pode funcionar como a retomada do orgulho americano, que o número de torcedores nas novas gerações pode crescer. Netinho interrompe para enfatizar: “Olha, a crise no América é antiga. Se o Romário estivesse realmente preocupado com isso teria vindo para cá enquanto ainda calçava chuteiras e fazia gols, que é o que ele sabe”.


Faz sentido. Diante disso, qual o futuro? “O meu não é muito longo, não”, graceja, “mas o do América eu desejo que sim”. E Netinho já cuida para que assim seja. “Meu neto, Antonio, tem só um ano e meio. O pai é flamenguista e minha filha, americana. Mas sabe como é a mulher para essas coisas de futebol: tem pouca força.” E aí, como garantir que o netinho do Netinho continue a tradição rubra da família? “Não tem garantia, mas tem chance de ele ter a alma rubra como a minha.” Mas, por via das dúvidas, Antonio já tem uniformes completos de todos os tamanhos até completar os três anos de idade. “É o que de mais valioso posso deixar para ele.” O pequeno ainda não sabe que, além das camisetas, talvez herde também o incalculável valor de uma paixão.

2010-10-24 19:43:07 O reino rosa de Roberta Riccio

Quanto se pode descobrir sobre alguém através apenas de seu quarto? No caso de Roberta Riccio, 19 anos, muita coisa. Já na porta do cômodo, ainda fechada, um adesivo em forma de coroa, composto por pedras brilhosas na cor rosa, denuncia o que vamos encontrar lá dentro. A porta se abre e várias associações vêm à cabeça: ela gosta de rosa, da Disney e da Barbie. Das quatro paredes, uma é ocupada totalmente pelo armário, duas são na cor rosa e a outra no lilás. Todas repletas de placas das princesas e quadro de fotos. Na cama, a grande quantidade de ursinhos de pelúcia quase não deixa ver a colorida colcha da Sininho - uma de suas personagens favoritas da  Disney. Os brinquedos da Barbie (casa, carro e até um avião) também compõem a decoração do quarto, assim como a claquete da Hollywood Studios, o pufe rosa em forma de estrela e “milhares” de outros adereços tipicamente de menina.


Em meio a tantos itens, alguns componentes do quarto, porém, fazem com que fique fácil desvendar a vida e a personalidade de sua dona. Encostada uma das paredes rosa, há uma estante branca. Nela se acha de tudo: DVDs, caixas de som, portaretratos, o bangalô da Barbie, esmaltes de cores vivas – rosa, verde, purpurinados... E, ocupando apenas uma das cinco prateleiras, o mais importante: os livros da faculdade. Em contraste com todo o resto, os livros que ali estão parecem pertencer a uma pessoa mais velha e séria. São grossos, alguns de aparência antiga e outros novos. Para quem só tinha reparado no quarto rosa, os títulos - Atlas de Anatomia, Sobotta; Química Orgânica; Cirurgia Maxilo-Facial, entre outros - impressionam. Quem esperava que a dona do quarto fosse uma jovem com a mentalidade infantil, começa a repensar a avaliação feita a partir da decoração.


Roberta Riccio Moura Costa é estudante de Odontologia da Universidade Gama Filho e estagiária da clínica da faculdade (às quintas-feiras à tarde) e do hospital público Salgado Filho (às terças à tarde e nas madrugadas de sexta para sábado). No quinto período da faculdade, ela ainda não se decidiu sobre a especialização a seguir: odontopediatria ou bucomaxilar. Por outro lado, ao falar da futura profissão, transparece muita segurança e paixão. O que nem sempre foi assim. Quando criança, até pensava em ser dentista, mas nada muito sério. Mais por pressão da família. Chegou a pensar em outros cursos, mas no final decidiu por essa que hoje parece ser a sua vocação. Era pelo que toda a família esperava e torcia. “Nos meus 15 anos pensei em fazer Publicidade, mas, com o tempo, fui me desencantando pela profissão. Na verdade, também não tive muito apoio de meus pais. Não receberam a notícia com entusiasmo. Meu pai sempre quis que eu seguisse a carreira de meu avô.”


A família é sempre muito presente nas falas de Beta (como muitos a chamam). As frases “meus pais sempre me apoiaram”, “meu pai me incentivou muito”, “mamãe sempre me ajudou com isso” são constantes. Até seu falecido avô é muito presente ainda em sua vida: “Eu tenho uma ligação muito forte com o meu avô até hoje. Sonho muito com ele, mesmo só tendo vivido ao seu lado durante quatro anos. Ele é presente em minha vida até hoje, principalmente por eu estar fazendo a faculdade que ele fez e vislumbrar o mesmo futuro profissional para mim. Meu avô era bucomaxilo das Forças Armadas. Querendo ou não, é uma vida estável, eu pretendo fazer o mesmo. A carga horária dá para eu conciliar com o consultório particular e, assim, as férias são garantidas. Quero ter uma rotina mais calma Eu quero ser mãe também. Quero ter a minha casa, quero cuidar das minhas coisas.” Ao falar de seu avô, da família e de futuro, sua voz parece acalmar, sem tom diminui e seus olhos parecem vagar à procura de algo. Talvez em busca de lembranças ou da materialização visual de um sonho, desejo muito forte.


Mais uma olhada no quarto e objetos parecem gritar, pedindo para que alguém indague a presença deles ali. O violão é o primeiro. “Hoje ele está aí de enfeite”, ela ri. “Já fiz aula de violão, de canto. Já gravei um single, me apresento em algumas festas na faculdade, mas tudo como hobby. Hoje, com os plantões, não dá para me dedicar”, conta ela, meio desanimada, pois essa é uma de suas paixões. Logo depois, um mini disco de platina pede atenção. “Um amigo-fã do Pará me deu. Ele é amigo de uma amiga minha da faculdade que morava lá.” Gargalha e continua: “ele acha que eu sou uma cantora de verdade, é apaixonado por mim. Ouviu a versão que fiz de uma música, no Youtube, e virou meu fã”.


Sempre disposta, muito amável e calma, explica a razão de vários objetos que estão em seu quarto. Apesar de ter cara de que fora montado para uma menina, ele só existe há uns três ou quatro anos, ela conta: “Meu quarto não é assim desde pequena, mas sempre foi meu sonho ter um quarto colorido, fofinho. É o quarto que eu não tive quando pequena, pois por muito tempo dividi o quarto com o meu irmão”. E quando questionada sobre a possibilidade de se desfazer de alguns de seus pertences, responde meio assustada: “De que, por exemplo?”. Uma leve alteração na voz, como que traduzindo certo espanto pela pergunta, e umas risadas meio sem graça por ter reagido de tal maneira, e explica: “Minhas coisas da Barbie, não. Meus ursinhos, sim; mas as coisas da Barbie, não. Minha casa da Barbie, por exemplo, quem me deu foi o meu avô, e ele já não está vivo. Tudo isso aqui foram meu avô, minhas avós que me deram” E, com um tom de quem procura mais explicações, continua: “Não é egoísmo, nem apego material. É que eu cuidei com tanto zelo, que não vou me desfazer deles agora. Eu pretendo guardar para minhas filhas. Sei que vão existir brinquedos novos, mas vou guardar para elas”. E, em sua última tentativa de se explicar, de tentar convencer de que não está agindo de má fé, diz com uma voz esperançosa, de quem achou o argumento certo: “Podem servir, no futuro, para decorar o consultório, caso eu venha ser odontopediatra”.


As semelhanças com as crianças, de fato, não se encerram pela paixão pelo “mundo da fantasia”, como ela mesma disse. Com 1,58 de altura, um pouco gordinha, o rosto de menina e a voz suave, sua aparência física talvez leva a confundi-la com uma menina de 15 anos. Se tivesse que associá-la a uma princesa, com certeza, seria à Branca de Neve, por sua pela branca e cabelos lisos e escuros na altura dos ombros. Sua meiguice, espontaneidade e inquietude também podem ser marcas que a juventude não conseguiu apagar. Durante toda a entrevista, ela não parou um minuto. Ou conversava com o namorado pelo MSN ou não parava de se mexer. O prendedor de cabelo que, no início, estava no seu pulso, foi parar no pé. Depois foi para a mesa do computador, retornou para a mão e voltou para o pé. Incrivelmente, ele ainda estava inteiro quando fui embora.  E o cabelo? Assumiu todas as formas possíveis diante de mim. De lado, ora virado para a esquerda, ora para a direita. Para trás, enrolado...


Fora esses pequenos sinais de inquietação, contraditoriamente, Roberta é calma. Sem alterações gritantes em seu tom de voz, nem movimentos muitos bruscos (quando sua mão estava desocupada), ela seguiu toda a entrevista com tranqüilidade.  Dificilmente olhava nos olhos. Parecia estar sempre pensando e procurando as palavras certas para falar. A única coisa que a tira desse estado e a deixa nervosa, segundo ela, é a falta de respeito, e, quando disse isso, falou em um tom sério: “Acho que respeito é a base de tudo. De um relacionamento, de uma amizade (...) não gosto, por exemplo, quando as pessoas me julgam sem me conhecer, é muito mais fácil sentar e conversar, não é?”.