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Às 15h07 no Shopping Nova América, localizado no bairro de Del Castilho, zona Norte do Rio de Janeiro, o movimento na praça de alimentação não foge muito do que se pode imaginar para uma quinta-feira comum. Idosos andando lentamente, olhando poucas vitrines, funcionários almoçando apressados, grupos de adolescentes a caminho do cinema com refrigerantes em mãos, e umas figuras estranhas, claramente desconfortáveis na espera de alguém que ainda não chegou. Situação parecida com a do jornalista que escreve essa reportagem. “Podemos marcar às 15h15? Sei que é um horário meio ruim, mas trabalho de madrugada, então assim dá para dormir umas cinco horinhas.” Depois de mais de dez anos trabalhando como jornaleiro, Anderson Martins de Castro, 34 anos, hoje trabalha nos Correios. Seu celular havia quebrado na noite anterior, então decidiu acordar um pouco mais cedo para conseguir combinar os detalhes da entrevista. Mesmo assim, sem a menor expressão de sono, chega oito minutos adiantado, ostentando orgulhosamente sua camisa rubra e uma barba longa e densa, preta. Ele me pergunta detalhes sobre a matéria e não consegue fugir da inevitável pergunta: “E você, torce para que time? Ah, é? O Flamengo nunca ganhava em Edson Passos. Só ganhou aquela vez em 2008”.
O conhecimento afiado sobre fatos como esse faz parte de toda a mística que ainda respira fora dos holofotes das contratações milionárias, dos debates diários na televisão e das construções das “arenas”. Anderson faz parte da resistência. Uma resistência à elitização daquele que é um dos maiores patrimônios culturais do brasileiro. Torce para o America, o primeiro, nascido na Tijuca, que inspirou sua coleção de cópias – são 33 oficiais – por todos os estados do país. Um dos clubes mais tradicionais na história do futebol brasileiro, mas que se vê hoje rebaixado (literal e subjetivamente) à posição de “segundo time” de todo carioca.

Anderson Martins é um dos torcedores que não abandona seu time de bairro / Foto: Arquivo pessoal
Para os torcedores dos clubes de menor poder aquisitivo – não ouse chamar de “time pequeno”, pode lhe custar a negativa a uma entrevista –, a lógica de torcer vai na contramão do que se vê ser cultivado nos times que disputam os maiores campeonatos. Enquanto os lucros decolam e as médias de público diminuem para estas potências, a paixão inabalável de torcedores de clubes como America, Bangu e Bonsucesso, todos do Rio, implica numa luta diária para manter viva toda uma maneira de viver o futebol. Foi um amigo, num dia de jogo, que falou: “a gente não é segundo time de ninguém, não, a gente é orgulhoso!”. Anderson vem de uma família vascaína, mas nunca se apegou muito ao cruzmaltino. O único jogo de que lembra ter ido foi a despedida do atacante Edmundo, em março de 2012, e porque era fã do jogador. Mas a paixão pelo futebol o acompanhava desde o berço, e o interesse pelos times fora do eixo principal do Rio de Janeiro já era cultivada quando começou a escanear escudos para o website que um amigo estava criando. Foi através da internet também que o torcedor começou a criar laços com sua maior paixão. Numa era em que a internet era discada e seu horário nobre era após a meia-noite, Anderson criava comunidades no extinto Orkut para clubes de menor expressão. O que mais fez sucesso foi o do America. “Foi a partir dali que comecei a conhecer os torcedores de verdade, os fanáticos. Só então comecei a ir aos jogos e me sentir um americano.”
Em pouco tempo o “Mecão”, como o time é carinhosamente chamado, virou a maior prioridade. “Jogo oito horas da noite em Campos (dos Goytacazes, cidade a 280 km do Rio) eu vou no gerente, peço folga, negocio, trabalho no final de semana, mas vou de qualquer jeito. Porque o Flamengo joga duas vezes por semana o ano inteiro. O América joga 30 vezes e acabou. O meu maior prazer não é a vitória, é ver o America em campo.” Para comprovar sua paixão, mostra as fotos dos ingressos de todos os jogos do “Diabo” (símbolo do clube) na Série B do Campeonato Carioca desse ano. O preço baixo do ingresso, que normalmente sai entre R$ 10 e R$ 20, não significa vida fácil para Anderson; às vezes ele gasta quase R$ 200 só com passagem de ônibus para as cidades no norte fluminense. “Não tem jeito, é uma plantinha que tem que regar. Porque quem vai segurar esse pepino somos nós, a geração mais nova. Por isso a torcida tem que botar a camisa, ler o estatuto, participar politicamente...”

Coleção de ingressos do Anderson de jogos do America / Foto: Arquivo pessoal
A construção de um shopping center no terreno da sede do clube, na rua Campos Sales, na Tijuca (zona Norte), é uma alternativa encontrada para tentar contornar as dificuldades financeiras. Projetos como esse, cujas obras devem começar em dezembro, são alternativas para os times de menor investimento, que regularmente acabam tendo que recorrer à venda de seus melhores jogadores para conseguir fechar as contas. Mesmo tendo certa aversão à política, hoje Anderson é sócio deliberativo do clube. Ele compreende que, para superar o momento de crise, é preciso que o torcedor não se limite às arquibancadas, e que o America também vá além e volte a ser parte do cotidiano de cada um deles. E para contribuir com isso, o jornaleiro vai voltar a usar a internet como ferramenta de exposição. Está desenvolvendo com um amigo americano um site, o Sanguenet, que irá reunir todas as notícias e informações publicadas na mídia sobre o time.
• Do torcedor da web aos bairristas
Anderson mostra como é torcer fanaticamente no século XXI, ou mais precisamente como cada torcedor deve ser ativo em todas as esferas para conseguir manter vivo o seu clube de coração, ou ainda como uma paixão pode surgir de uma pesquisa na Wikipedia e se transformar em algo muito maior. A história de Anderson destoa do que se espera normalmente de um torcedor: de que teria crescido perto do clube, do estádio, oriundo de gerações que cultuam seus times de bairro e participam das torcidas como uma tradição familiar especial. Mas enquanto esse americano apaixonado ilustra as possibilidades de uma nova geração, que tem acesso a toda a história de um clube a alguns cliques de distância, e cria seus próprios laços pelo time que quiser, ainda há os tradicionalistas, os bairristas, a “velha guarda” do futebol carioca. É o caso do professor de geografia George Joaquim Machado, torcedor do time sediado no bairro de mesmo nome na zona Norte do Rio. “Isso aí é uma herança, uma boa herança, por sinal, do meu querido avô que já está lá no céu, torcendo entre as nuvens pelo meu querido Bonsucesso Futebol Clube.” Ele não consegue desatrelar a própria paixão da do avô Benjamin, sócio do “Bomsucesso” (grafia antiga do nome do time) durante toda a vida e responsável por ter passado essa tradição ao neto. Mas para George, torcer para um time de menor poder aquisitivo é algo que tem uma origem singular; não é necessário nenhum tipo de pressão familiar ou midiática. “Para torcer por um clube de menor investimento tem que ser amor à primeira vista. É bater os olhos nas cores, é bater os olhos na tradição e sentir o coração bater mais forte. É assim que se torce para Bonsucesso, Madureira, Olaria...”.

Carteirinha de sócio do Bonsucesso de Benjamim Joaquim Ferreira, avô de George / Foto: Arquivo pessoal
Diferentemente do resto da família, seduzida a torcer por algum dos quatro maiores do Rio (Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo), o carinho do professor pelo Leão da Leopoldina não foi colocado em segundo plano. “Eu passei minha juventude toda vendo o Bonsucesso na segunda divisão. Foram 18 anos de segunda divisão.” Tomando o calendário marcado por campeonatos estaduais, o momento de destaque na atuação do clube, gravado na memória de George, foge da regra: “Geralmente, o torcedor de time de menor investimento tem um jogo marcante com time grande. Eu não tenho nenhum, apenas sei pela história”, ele responde. E elege uma partida justamente contra o America de Anderson, em 2013, quando havia a crença de que o time subiria para a primeira divisão: A partida foi no Giulite Coutinho, estádio do adversário em Mesquita, cidade da Baixada Fluminense. George acha que, como o America é o segundo time de todo mundo, então a mídia “dá uma moral para eles”. “Tínhamos sido prejudicados pelo árbitro num jogo decisivo contra a Cabofriense, então estava todo mundo cabisbaixo indo para a partida. Mas foi um jogaço, lá e cá, merecia ser transmitido em rede nacional!” O Bonsucesso conseguiu fazer 2x1 e foi pressionado até os 40 minutos do segundo tempo, quando o atacante do America se livrou da marcação e bateu para o gol. “A bola passou pelo goleiro. Ela ia entrar devagarinho, chorando, mas o nosso zagueiro chegou na hora e tirou na linha. Deu um chutão para onde apontava o nariz e depois virou para a torcida, balançou a camisa, urrou e bateu no peito, como se tivesse feito a jogada do ano. Quando olhei em volta, percebi que não era o único emocionado com aquilo. Tinha muita gente chorando comigo. Nem quando o Bonsucesso subiu para a Série A em 2011 foi emocionante assim”, narrou George.

George ao lado de seus pais no Lêonidas da Silva na década de 1990 / Foto: Arquivo pessoal
Mas não é só de alegrias que vive essa paixão. Uma série de problemas jurídicos recentes – com direito a um presidente afastado tentando se candidatar pela chapa de oposição – prejudicou ainda mais a situação financeira do clube. Durante três anos essa crise interna imobilizou as medidas administrativas para buscar uma recuperação dos cofres do time, e isso acabou sendo refletido em campo, com temporadas seguidas de luta contra o rebaixamento para a série C do Campeonato Carioca. O outro problema crucial apontado por George para essa situação diz respeito ao Estádio Leônidas da Silva (conhecido pela torcida como o “Teixeira de Melo”, nome da avenida onde se situa), que vem tendo dificuldades para conseguir os laudos liberatórios para a realização das partidas. “Nós sofremos muito quando o Bonsucesso é proibido de jogar na sua casa. A torcida sempre é o décimo segundo jogador, seja para time grande ou time pequeno. Mas para a gente os estádios são mais acanhados, apertadinhos, então a torcida tem que estar ali para fazer a pressão, faz parte do jogo.” E por isso, mesmo levando em conta todas as dificuldades de acompanhar um time com problemas tão sérios, nenhum tipo de arrependimento passa pela cabeça do torcedor rubro-anil. “Às vezes eu tenho arrependimento de não invadir o campo e não sentar a mão na cara do juiz que nos rouba” é sua única observação sobre o assunto. O professor, que recebeu o título de benemérito por serviços prestados ao clube, sabe que, para manter viva essa história, é preciso doar um pouco do tempo e da vida pessoal por seu clube de coração.
• A voz dos times de menor investimento
Assim como Anderson, George também tem sua contribuição na rede. É a Folha Rubro-Anil, blog quase diário que divide o tempo dele com a preparação das aulas de geografia, dando todas as notícias, opiniões e curiosidades sobre o “Bonsuça”. Os dois torcedores sabem que a internet é uma das únicas maneiras de conseguir disseminar a cultura e a história de times que não aparecem naturalmente nos canais tradicionais de mídia. E ambos reconhecem a importância que um site – o FutRio – teve para o início dessa trajetória. Contando hoje com uma equipe de 7 jornalistas apaixonados por futebol, completou 10 anos de existência em abril deste ano. Em 2007, Cláudio Burger e Stéfano Salles lançaram o blog “Tribuna da Bola”, que cobriria a Copa Rio e as séries B e C do Campeonato Carioca. No mesmo ano, o blog foi absorvido pelo site SRZD, do também jornalista Sidney Rezende, onde virou uma editoria e começou a crescer em público e reconhecimento. Emancipando-se em 2010, o FutRio virou um dos pilares fundamentais para manter as torcidas dos times de menor investimento informadas, expandindo sua cobertura do campeonato estadual. No ano seguinte, lançou a Rádio FutRio, que transmite até hoje todas as divisões do Carioca ao vivo e alguns jogos do Campeonato Brasileiro e da Copa do Brasil, além de ter uma programação diária com debates, entrevistas e programas especiais.
Renan Mafra, editor, comentarista e presente desde 2011 na equipe da qual tanto se orgulha de trabalhar, já conhecia todos os torcedores entrevistados pela nossa reportagem. Inclusive ofereceu o contato de mais seis que achou que seriam interessantes para a matéria. Figurinha carimbada nos jogos dos times de menor investimento, ele participa das transmissões da rádio, e mantém esse contato caloroso com os torcedores porque sabe que todos estão fazendo um esforço extra para estar ali: “A torcida dos times grandes e dos pequenos é parecida, mas é preciso ter aquela paixão a mais para conseguir acompanhar um time que não sai no jornal. Um torcedor do Flamengo não precisa ir ao estádio nem ao clube e sabe de tudo que está acontecendo se ligar a TV num canal de esportes. Em qualquer jogo dos quatro grandes vai ter uma equipe de transmissão. Já para os menores, muitas vezes nós somos os únicos. O público reconhece isso, dá um valor para a gente, e a gente dá muito valor a esse torcedor também.”
Ele avalia que os clubes devem reconhecer esse momento de crise como uma oportunidade de abraçar uma das singularidades de torcer para um time de menor investimento: a relação com o bairro, a comunidade e a tradição. “Tem times, como o Bangu e o Bonsucesso, homônimos de seus bairros, que têm uma história centenária, conseguem manter uma identidade de bairro, e acabam virando centros para suas comunidades. Essa é uma das saídas para conseguir um público novo, porque os resultados não vão conseguir fazer isso ainda”, diz Renan. Talvez por efeito disso, ele observa uma recente emergência de times de cidades do interior. Enquanto times como o São Cristóvão FC, primeiro campeão carioca rebaixado para a Série C, caminham com pernas bambas, surgem exemplos como o Boavista, clube fundado em 2004 na cidade de Saquarema (na região dos Lagos) e presente na elite do futebol carioca há 11 anos. “Algumas cidades são colocadas no mapa por causa do futebol, como por exemplo, Cardoso Moreira (no Norte Fluminense), que jogou a primeira divisão do Carioca em 2008. As pessoas não sabiam que o nome da equipe era o nome de uma cidade. A mesma situação aconteceu com Quissamã (também no Norte Fluminense). E essas cidades acabam abraçando o time. O time coloca a cidade no mapa, e acaba que a cidade abraça o time.” No outro lado do espectro, dá o exemplo do America, que vendeu sua tradicional sede na Tijuca e se mudou para Edson Passos, no município de Mesquita. Desde então, as médias de público diminuíram e a relevância do clube para sua fiel torcida vem sendo lentamente apagada do bairro, agravando ainda mais a crise que vive o clube.

Equipe de transmissão do FutRio (Renan é o segundo da esquerda para a direita) / Foto: Arquivo pessoal
Mas Renan se mantém otimista. “Esses times com mais tradição vão chegar no que eles acham ser o fundo do poço, mas verão que têm mais poço embaixo e vão conseguir se reerguer. A gente vê um monte de times empresas, como o Audax [time comprado pelo grupo Pão de Açúcar, com o propósito de desenvolver e vender jogadores], aparecendo nos campeonatos estaduais, mas isso não vai durar, não. Os times tradicionais têm algo que não dá pra comprar: o amor do torcedor, que vai apoiar não importa o que aconteça.” O jornalista acredita que é esse amor incondicional que vai conseguir trazer de volta a energia para os estádios de bairro, que abrigam tanta tradição.
E esse amor contagia muita gente, como os cariocas Diego Mello e Rafael Machado. O que começou como a cobertura de um jogo em Madureira (na zona Norte do Rio) para um trabalho da faculdade de Diego virou hoje a Doze Futebol, empresa que tem como missão “defender a cultura da arquibancada que se perdeu nas arenas modernas”. Ambos com 23 anos – um fez jornalismo, o outro, design –, mas decidiram juntar suas câmeras para idealizar o projeto, que vem crescendo em reconhecimento depois de um vídeo viralizar nas redes sociais e entre veículos tradicionais da mídia. A página no Facebook começou apenas com imagens, mas logo se especializou na produção de vídeos, com um formato que procura expor o porquê de torcer por um time de menor investimento. “As pessoas ficam felizes de ver que tem gente ali que se importa em passar a imagem do seu clube de coração adiante. Às vezes nós pedimos para um torcedor falar sobre o amor ao seu clube e ele diz que não pode porque vai chorar muito.” Rafael acha que esse tipo de amor não é mais visto nas grandes arenas, principalmente com aumento do preço dos ingressos, que acabam selecionando apenas o torcedor que pode pagar, deixando uma parcela de fanáticos fora do estádio. Mas é uma relação que também vai além da arquibancada. É o hábito de acompanhar os treinos, conhecer os jogadores, esperar na porta do vestiário para celebrar uma vitória ou consolar uma derrota. É esse tipo de interação que fascina Diego, Rafael e boa parte dos seguidores da página. “Ele sente que faz parte do clube, e o clube é parte do seu bairro, da sua cidade. É por isso que o torcedor desses times se apaixona tanto.”
Rafael tem a convicção de que esses clubes não vão acabar. “Enquanto houver torcida e algum nível de renovação, eles vão continuar aí”, defende. Ele cita o “bom” exemplo do Serrano FC [clube centenário fundado na cidade de Petrópolis], que passou muito tempo apagado: “de repente recebeu uma leva de torcedores entusiasmados, e está aí, na Série B do Carioca”. Ele cita o exemplo de um torcedor da Portuguesa-SP, entrevistado quando esteve no Rio para um jogo contra o Bangu, que estava indignado com a gestão anterior e com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) – o time declarou falência e, em novembro de 2016, leiloou seu estádio para quitar dívidas. “Ele falou: ‘se a Portuguesa acabar, pode mandar me procurarem, porque ou eu vou estar morto ou tentando me matar’. É por causa dessas pessoas que não vão acabar. É essa teimosia da torcida.”
Vídeo Paixão América – DOZE Futebol
Vídeo Paixão Bangu – DOZE Futebol
A opinião geral é que é difícil para alguns desses clubes voltarem a ser o que foram em seus tempos de glória. Em parte, porque muito do que foi escrito em suas histórias vem de conquistas estaduais. Com um amplo debate em voga sobre a reforma do calendário no futebol brasileiro, e uma série de problemas na gestão de federações, esses campeonatos, tão particulares do futebol brasileiro, perdem força a cada ano. E com isso, os times perdem sua principal fonte de receita e o pouco de exposição que conseguem nos grandes canais de mídia. Porém, um desses clubes conseguiu ter o seu momento de estrelato no cenário nacional, e não faz tanto tempo assim. Em 1985, a Taça Ouro (correspondente ao Campeonato Brasileiro) teve a participação de 44 times, mais que o dobro dos 20 que competem na primeira divisão no formato atual. E dentre todas maiores potências do futebol nacional, certamente não foram muitos que apostaram num tradicional clube de bairro, oriundo da zona Oeste do Rio. No dia 31 de julho, o Bangu amargou talvez sua mais dolorosa derrota, em seu momento mais glorioso. Perdeu a grande final nos pênaltis para o Coritiba, diante de 91 mil torcedores que vibraram e apoiaram o alvirrubro até a última cobrança convertida pelo zagueiro Gomes, do clube paranaense. Nas arquibancadas do Maracanã estava Clécio Régis. Hoje com 57 anos, Clécio tem construída uma carreira premiada como cenógrafo, mas suas habilidades artísticas já lhe rendiam alguma notoriedade naquele dia, 32 anos atrás: “Eu soltei um balão com um escudo do Bangu escrito ‘Tóquio’ na frente, está lá registrado, na matéria do Globo sobre os trinta anos da final. Fui eu que fiz aquele balão. Entrei com ele escondido na jaqueta, e meu irmão levou a faixa, também na jaqueta. Naquele tempo não tinha muito essa coisa de revista no Maracanã, entrávamos até com fogos de artifício.”

Clécio em um jogo do Bangu em Moça Bonita / Foto: Arquivo pessoal
Hoje, Clécio ainda recebe pedidos de entrevistas de jornalistas e de universitários. Parte por causa de seu trabalho, parte pela sua inesgotável fonte de conhecimento sobre o time que ama tanto. Foi ele o escultor da estátua de Thomas Donohoe, imigrante escocês que, de acordo com alguns historiadores, organizou as primeiras partidas de futebol do Brasil em 1894, no pátio da Fábrica de Tecidos Bangu, que hoje abriga o Bangu Shopping, e onde está exposta a estátua. “Patrick Donohoe, filho do Thomas, foi o primeiro a fazer fez um gol de bicicleta, em 1912! Vinte e seis anos antes do Leônidas da Silva! (jogador da seleção brasileira nas Copas de 1934 e 1938)”. Durante quase dez minutos, dá uma aula completa sobre os pioneirismos e recordes do Bangu Atlético Clube: primeiro time a escalar um jogador negro, participante do primeiro campeonato carioca, campeão do primeiro campeonato carioca na era profissional, primeiro a ter patrocínio na camisa, primeiro a desenvolver segundo e terceiro uniformes, primeiro campeão no Maracanã... Os olhos que brilham enquanto fala fazem parecer que ele se emociona com a história do clube como se ouvisse tudo pela primeira vez.

Estatua de Thomas Donohoe, um dos introdutores do futebol
no Brasil, em frente ao Bangu Shopping / Foto: Gabriela Silva
Seu tom sério conseguiu convence que não poderia se ser de outro jeito. Desde a infância dura no Morro do Juramento (no bairro de Vicente de Carvalho, na zona Norte), Clécio já tinha uma afeição pelo time que vestia a camisa alvirrubra, e o sentimento se transformou quando, aos 11 anos, se mudou com a mãe para o Conjunto Habitacional Dom Jaime Câmara, no bairro que vive e cultua até hoje. “Quando dei de cara com a Vila Operária, pensei: ‘Isso aqui é um paraíso, estou em Londres!’ Nós temos um clube que se confunde com a história do bairro, um bairro operário, que se confunde com a história da fábrica de tecidos que exportou moda para o mundo. Ainda temos um estádio que vai completar 70 anos, feito por operários, para operários e inaugurado por Luiz Carlos Prestes(, olhe que coisa fantástica!”
Entre as fotografias que lotam as paredes de seu atelier, que vão de celebridades a momentos importantes da carreira, figuram imagens do ex-presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores. De repente é mais fácil compreender a paixão que sente pelo bairro que mora, construído na década de 1890, imitando a arquitetura dos bairros operários ingleses, e sua devoção ao clube a partir desta perspectiva. E essa sensação de pertencimento envolve a ainda presente torcida do clube, que segue fiel ao seu clube de bairro: “Eu posso dizer que nós somos mais fanáticos até mesmo que torcedores de Corinthians e Flamengo, porque eles têm motivos para isso, são títulos em cima de títulos, mídia... E o Bangu? O Bangu pode jogar no quinto dos infernos e leva a torcidinha dele, a bandinha dele.” O filho Yuri, de 19 anos, é banguense, nem pela seleção brasileira torce. Clécio conta que, contrariando as expectativas, a partir do rebaixamento no Campeonato Carioca em 2004 – ano do centenário do clube – a torcida tem abraçado mais o time, especialmente os mais jovens: “É questão de tempo isso aí, as torcidas estão se renovando, tudo está se renovando”. E depois completa, com esperança: “Estamos 29 anos apagados, mas tudo o que o Bangu fez no passado não vai se apagar. Como um clube de tradição, histórias e glórias fantásticas vai ser apagado? Jamais!”
Entrevista com Clécio Régis, torcedor do Bangu Atlético Clube
É o desafio que confronta diariamente estes torcedores, jornalistas, fãs do futebol e de seus times de coração. Com seu amor desafiado cada vez mais por todos os tipos de problemas, os clubes tentam apoiar-se em suas histórias e glórias do passado para tentar não virar vítimas delas. Seja através das iniciativas como as de Anderson e George ou projetos como o FutRio e o Doze, é possível vislumbrar um mercado em potencial que talvez consiga resgatar e manter viva toda essa tradição que marcou, e ainda marca, a vida de muitos apaixonados pelo clubes de menor investimento.
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