Amanda Abreu é uma dessas meninas que impressionam. A juventude de seus 22 anos falha em mostrar toda a experiência que já adquiriu em suas viagens pelo mundo. Ela nos recebeu em sua casa, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, com uma simpatia acolhedora e conversa fácil, de short e camisa do Flamengo, time pelo qual diz torcer desde pequena, e de óculos de grau, necessidade por passar em média seis horas por dia na frente de uma tela de computador. Mas Amanda não despende esse tempo apenas por ser uma jovem que gosta de acessar a internet. Ela é jogadora profissional de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO), uma jogo de tiro da modalidade FPS (First Person Shooter), ou, em português, Tiro em Primeira Pessoa, e treina todos os dias. ”Como em um emprego normal”, faz questão de ressaltar.
Seu quarto e espaço de treino denunciam sua personalidade forte, confirmada por suas declarações contundentes e sua luta pela igualdade entre homens e mulheres, especialmente dentro do mundo dos games. Além dos quadrinhos e fotos que emolduram a parede, há também imagens que remetem ao feminismo. Orgulhosamente, Amanda retira-as do lugar para mostrar mais de perto, e acrescenta: ”Eu sou muito feminista, faço questão de mostrar, olha aqui”. A cor vermelha predomina no ambiente, inclusive iluminando o teclado do computador. E mais do que apenas a cor do seu time de coração e do seu patrocinador, Amanda defende que a tonalidade representa ”a mulher que é segura”. “Eu gosto de assustar o homem que tem medo de mulher segura”, revela. E Amanda treina exaustivamente. Diante do computador, bem em frente a sua cama, a jogadora do time Alientech, de Portugal, tem passado pelo menos um quarto de seu dia em preparação para um campeonato na Suécia. “É cansativo, exaustivo, psicologicamente é muito complicado, porque tem dias que você não aguenta olhar pro computador e tem que passar seis horas treinando. Mas é realmente um sonho, porque tudo que eu tenho em retorno compensa todos os sacrifícios.”
Amanda é apenas uma dentre milhares de mulheres praticantes de games no Brasil hoje. E a presença feminina nesse universo não é pequena. A Pesquisa Game Brasil 2017, realizada pela agência de tecnologia Sioux em parceria com a Blend New Research e a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), aponta que, dentre as pessoas que declaram jogar algum jogo eletrônico, 53,6% são mulheres (em 2016 esse número era de 52,6%). Dentro desse universo, seis em cada 10 mulheres se definem como jogadoras casuais e preferem a plataforma mobile (smartphones, tablets, computadores de bolso, PDAs etc.). As mulheres gamers possuem um perfil específico: jogam de 1 a 3 horas por semana em média e preferem jogos de estratégia, aventura, cartas, Match 3 (em que é preciso reunir três ou mais peças seguidas para a obtenção de pontos, como nos jogos Bejeweled e Candy Crush) e trívia (do tipo em que os jogadores testam seus conhecimentos sobre temas de interesse geral, a exemplo de Quiz). Já a pesquisa Youtube Insights, divulgada em julho, mostra que 80% do público que joga games de celular no Brasil é formado por mulheres.
As cifras movimentadas pela indústria dos games em todo o mundo têm demonstrado a força do setor. Se em 2016 o setor da música faturou US$ 15,7 bilhões, os games renderam sete vezes mais, ou US$ 108,9 bilhões. E o Brasil não deixou de dar sua contribuição nessa área: cerca de 56 milhões de brasileiros consomem conteúdo de games online, tendo movimentado com os jogos, em 2016, quase US$ 1,5 bilhão. As cifras colocam o país como 11º no ranking mundial e 1º na América Latina. E em número de jogadores é o 4º do mundo.
A consolidação do crescimento do público feminino é ligada especialmente à imagem, já que as jogadoras profissionais estão ocupando um espaço grande em divulgação. Os homens, no entanto, ocupam um lugar de destaque com torneios bem estruturados e com gordas premiações. Os campeonatos femininos no mundo todo ainda são escassos. Poucos possuem prêmios e, quando os têm, os valores chegam a ser 400% menores do que em torneios masculinos do mesmo nível. A paixão de Amanda pelo jogo começou como a de qualquer jovem que frequentava as clássicas lan houses na primeira década dos anos 2000. “Eu fui criada com três primos na minha casa e eu nunca fui muito menininha. Eu cresci jogando futebol, bolinha de gude. Nessa época que o CS estourou na lan house, eles pararam de ir pra rua jogar futebol e ir pra lan house jogar. E teve um dia que eu bati o pé e falei ‘ah, eu quero ir, vocês não brincam mais comigo’. Isso eu devia ter uns 15 anos. E fui. Foi a primeira vez que eu joguei CS. Eu era a única menina da lan house, a única. Passei lá um dia inteiro e eu me apaixonei pelo jogo.”
A paixão de Amanda pelo jogo começou como a de qualquer jovem que frequentava as clássicas lan houses na primeira década dos anos 2000. "Eu fui criada com três primos na minha casa e eu nunca fui muito menininha. Eu cresci jogando futebol, bolinha de gude. Nessa época que o CS estourou na lan house, eles pararam de ir pra rua jogar futebol e ir pra lan house jogar. E teve um dia que eu bati o pé e falei 'ah, eu quero ir, vocês não brincam mais comigo'. Isso eu devia ter uns quinze anos. E fui. Foi a primeira vez que eu joguei CS. Eu era a única menina da lan house, a única. Passei lá um dia inteiro e eu me apaixonei pelo jogo.”
Amanda "AMD" Abreu treinando para torneio mundial feminino de CS:GO (Foto: Arquivo pessoal)
O jeito pouco “menininha” fica evidente no jeito moleque e brincalhão de Amanda e no boné que adorna sua cabeça junto ao fone de ouvido, seus fiéis companheiros em momentos de treino e partidas. Apesar de a maquiagem estar sempre presente nos momentos sob holofotes, ela ressalta que suas roupas de jogo são sempre blusas e calças. Apesar de serem sua escolha para se vestir, ela acredita que a indumentária explica porque sofre pouco assédio no ambiente dos games. Porém, avisa que não tem nenhum problema com as mulheres que utilizam roupas consideradas mais ”provocantes” e condena o assédio sofrido por elas. “Eu não tenho um pingo de vaidade com roupas, estou sempre de boné, mas as meninas que têm um jeito mais vaidoso sofrem muito e são muito xingadas por se vestirem da forma que elas querem. Isso me incomoda muito, porque a sociedade se incomoda muito com o que você está vestindo. Elas estão ali para mostrar seu jogo e as pessoas as julgam por suas roupas.”
• Gamergate
O machismo no mundo gamer ganhou visibilidade em 2014 após o episódio que ficou conhecido como Gamergate. O escândalo foi o resultado de uma onda de cyberbullying provocada pelo ex-namorado da desenvolvedora de games Zoë Quinn, que criou um blog destinado a difamá-la, afirmando que a designer trocava críticas positivas de jornalistas especializados sobre seu novo jogo – Depression Quest – por sexo. A situação chegou a um ponto em que todas as mulheres que a defenderam sofreram ataques, assédio e ameaças, chegando ao ponto de Zoë e suas amigas mudarem de endereço e se esconderem por medo. O acontecimento chamou a atenção da mídia para o sexismo e para a agressividade com que as mulheres são tratadas no mundo gamer, o que é corroborado por Amanda mesmo quando se trata do ambiente amador dos jogos: “Tenho amigas que não são profissionais, que jogam só para se divertir e que sofrem 24 horas por dia com pessoas aleatórias mandando elas irem lavar louça ou sendo chamadas de vagabunda simplesmente porque elas jogam melhor do que eles”.
Um desses casos é o de Renata Bagnato, conhecida no mundo dos games como “Reeh Redwish”. Jogadora amadora de CS:GO e começando seu primeiro time, ela é figurinha carimbada em streams (ambientes online para transmissão de jogos em tempo real). Por estar em uma plataforma pública e gratuita – o Twitch, da Amazon –, Renata está um pouco mais sujeita a lidar diretamente com preconceito e assédio através da sessão de comentários e dos jogadores do sexo masculino. “Com certeza (eu sofro preconceito). Isso ocorre tanto no jogo quanto na própria stream, na própria Twitch. As pessoas chegam e falam ‘nossa, mostra os peitos’, porque mulher é sinônimo de objetificação, né?” A jogadora ainda ressalta que o problema não se encontra nas roupas ou na jovialidade da mulher por trás do computador ou do console de videogame. Renata conta que o preconceito acontece até mesmo com sua mãe, iniciante na modalidade e que joga apenas por diversão. “Até com a minha mãe, você acredita? Minha mãe faz umas lives (transmissões online ao vivo) de vez em quando e tem gente que vem xingar ela, tipo ‘o que você tá fazendo, vai assistir novela, sua velha’. As pessoas não têm limite na internet, é ridículo. Ela entra e joga CS. Ela não é boa, ela tá aprendendo agora a jogar, e aí ela entra às vezes no competitivo e o povo fica ‘meu Deus, por que você tá jogando? Vai fazer comida, vai fazer janta’. Nada a ver, sabe?”, conta. “Outro dia a gente tava fazendo live tranquilamente, até que chegou um cara e começou a xingar muito ela. A gente dava ban (abreviatura de banned, que significa banido), ele criava outra conta e ficava xingando, sabe? Até ela fechar a live mesmo, o cara ficava fazendo isso”, relata Renata.
Renata “Reeh Redwish” Bagnato já foi vítima de preconceito
na plataforma Twitch (Foto: Arquivo pessoal)
• Assédio indiscriminado
Idade realmente não parece ser impedimento para xingamentos, assédio ou comportamento grosseiro no mundo dos games. Um caso recente ficou bastante famoso por conta justamente da pouca idade da jogadora que sofreu violência virtual. Um pai foi às redes sociais pedir que sua filha, de apenas 10 anos e jogadora de Overwatch (jogo de FPS semelhante ao CS:GO), pudesse jogar em paz. Eros Reis fez um apelo – que viralizou na internet – simples: “Logo de cara irei pedir ajuda. Minha filha mais velha gosta muito de jogar Overwatch no PS4 (PlayStation 4, um console de videogame), é uma boa menina educada e gentil, tem 10 anos, mas sempre que tenta usar o H7 (modelo de headphone) é bombardeada por xingamentos e pedidos desrespeitosos. A quantidade de mensagens pedindo fotos e outras coisas é desanimador.” O caso da filha de Reis não é isolado. De acordo com uma pesquisa feita pela Universidade Estadual de Ohio em 2016, nos Estados Unidos, 100% das gamers que jogam 22 horas por semana ou mais já sofreram assédio no ambiente virtual. Apesar do assédio não ser restrito apenas às mulheres, a predominância da violência contras o gênero feminino assusta. Os tipos de assédios mais frequentes detalhados pela pesquisa envolvem pedidos sexuais, piadas com estupro, além de xingamentos de cunho sexista, relacionados à aparência da jogadora.
Mesmo diante do quadro geral muito desanimador, através de relatos e pesquisas que confirmam o preconceito e o assédio tanto contra gamers amadoras quanto profissionais, as jogadoras não parecem estar dispostas a desistir da luta por espaço e igualdade. E Amanda Abreu é um dos principais exemplos disso. Na briga por melhores prêmios para ela e suas companheiras de competição, a jovem iniciou em 2017 a campanha “Fechada com as Minas”, para arrecadar fundos, cujo objetivo é aumentar os valores para as equipes vencedoras do torneio Power Lounge Cup Feminina. A iniciativa, que foi anunciada ndas redes sociais com a hashtag #CSGirls, previa que as jogadoras vendessem camisetas e se organizassem para jogar por 24 horas (com substituição de jogadora a cada três horas) durante uma semana, num total de 168 horas ininterruptas, inclusive com a participação de alguns jogadores homens apoiadores da causa. Também contou com o apoio de alguns programas de TV especializados no assunto, como o EI Games, do canal Esporte Interativo. “Eu fiz um projeto porque nenhum campeonato brasileiro teve premiação no feminino. Então eu fiz uma maratona que durou sete dias, com todas as mulheres do cenário, pra gente fazer streams 24 horas e nós arrecadamos 10 mil reais para o campeonato feminino”, conta, orgulhosa, a jovem.
Ainda que as cifras que envolvem o mundo dos games sejam bilionárias, o cenário feminino é carente de apoio por parte de patrocinadores e investidores. Por isso, as próprias jogadoras têm arregaçado as mangas e, a exemplo de Amanda, começado a fazer suas partes. Outra iniciativa da união feminina no meio é a organização Women Up Games, fundada em 2014 pela empreendedora e designer de games Ariane Parra. Ela, através de palestras, campeonatos e workshops para mulheres gamers, busca aumentar a inclusão de mulheres no mundo dos games, inclusive incentivando as que têm interesse em trabalhar no meio com desenvolvimento e desenho de jogos. Aluna de Engenharia de Produção e com um certificado em Gestão e Liderança pela Universidade de Pittsburg, nos Estados Unidos, em 2009, Ariane tem como meta empoderar as mulheres através da tecnologia.
Mas a luta pela igualdade na área dos games pelo jeito apenas começou. Para Amanda, ser campeã mundial nem é tão importante. O sonho dela, de Renata e de todas as mulheres gamers é o mesmo: o fim dos ataques gratuitos de preconceito e assédio somente por elas serem mulheres e de que, na vida e no jogo, todos sejam iguais, independentemente do gênero sexual.
Torneio feminino da EWSC, empresa especializada na realização de eSports (Foto: Site E-Sports)